Take a photo of a barcode or cover
A review by gabrielleap
O olho mais azul by Toni Morrison
5.0
O Olho Mais Azul, de Toni Morrison, é um livro terrivelmente desafiador. Atualmente, está banido em diversas escolas norte-americanas, o que me fez querer lê-lo o quanto antes. A história apresenta uma família moldada pela violência do racismo cotidiano, que afeta a forma como seus membros se percebem e se movimentam no mundo. O livro me fez lembrar o que Tupac quis dizer com THUG LIFE – The Hate U Give Little Infants Fucks Everybody –, ou, em tradução livre, “o ódio que você semeia nas crianças ferra com todo mundo”.
Toni Morrison consegue, através de uma apropriação ímpar do vocabulário e sentidos de uma comunidade, comunicar a banalidade aparente de situações absurdas: o desejo de uma criança preta de ter o olho azul e passar a ser amada e vista, o alcoolismo do pai, a violência dentro e fora de casa, incesto, estupro, ódio localizados em uma Ohio dos anos 40.
Entre 1877 e 1954, as leis Jim Crow institucionalizaram o racismo nos Estados Unidos. Bebedouros separados eram o menor dos problemas. Estamos falando de comunidades inteiras que por mais de 80 anos foram criadas e desenhadas propositalmente para não ter acessos e infraestrutura. O livro foi publicado em 1970 e já descrevia o que só depois, em 1982, seria academicamente chamado de “racismo ambiental” pelo ativista de direitos civis Benjamin F. Chavis Jr. Chavis usou esse termo para descrever a distribuição desigual de riscos ambientais baseados em raça. Você pode ler mais sobre o tema aqui.
De volta ao livro, relendo alguns trechos marcados, percebi que tudo gira em torno da metáfora da infertilidade e improdutividade do solo, apresentada logo nas primeiras páginas. A infertilidade seletiva que impede que certas flores floresçam e que contamina certas famílias com a falta de esperança e o chorume do lixo.
Jamais ocorreu a nenhuma das duas que a própria terra pudesse estar improdutiva. Tínhamos jogado as sementes no nosso canteiro de terra negra, exatamente como o pai de Pecola havia jogado as suas no canteiro de terra negra dele. Nossa inocência e nossa fé não foram mais produtivas do que a luxúria ou o desespero dele. O que está claro agora é que, de toda a nossa esperança, do medo, da luxúria, do amor e do pesar, não resta nada além de Pecola e da terra improdutiva(…) Nos lugares onde elas moravam não crescia grama. As flores morriam. Abatiam-se sombras. Floresciam latas e pneus onde elas moravam. Viviam de feijão-fradinho frio e refrigerante de laranja (…)
E por outro lado, quando as personagens se deparam finalmente com o céu azul, é um céu que não é familiar, já que os seus eram conhecidos por ter manchas alaranjadas.
As casas à beira do lago eram as mais bonitas (…) O quintal dessas casas estendia-se em vertentes verdes até uma faixa de areia, e depois era o lago Erie, azul, marulhando até o Canadá. O céu com manchas alaranjadas da área onde ficava a siderúrgica nunca chegava a esta parte da cidade. Este céu era sempre azul.
Boa parte do livro estamos vendo o mundo através do olhar de meninas que estão tentando entender o mundo devastador que as cerca, elas estão cheias de perguntas, elas querem a liberdade, a abundância, a vida, a beleza, o amor. Mas como? A própria autora, no posfácio, diz ter distribuído o peso dessas perguntas problemáticas entre um público maior. Então cabe a nós, leitores, a tarefa de compreender o que as crianças do livro não conseguem. Cabe a nós, leitores, não ser inocentes.
Agora até penso que a terra do país inteiro era hostil a cravos-de-defunto naquele ano. Este solo é ruim para certos tipos de flores. Não nutre certas sementes, não dá certos frutos, e, quando a terra mata voluntariamente, aquiescemos e dizemos que a vítima não tinha o direito de viver. Estamos errados, é claro, mas não tem importância. É tarde demais. Pelo menos nos limites da minha cidade, entre o lixo e os girassóis da minha cidade, é muito, muito, muito tarde.
Sobre a inocência dessas crianças, o prólogo confuso me intrigou tanto que acabei encontrando uma explicação maravilhosa em inglês. Vou deixá-la traduzida aqui. Faz sentido eu não ter compreendido de imediato, pois se trata de uma referência cultural norte-americana muito específica.
”Cada seção deste prólogo fornece, de maneiras diferentes, uma visão geral do romance como um todo. À primeira vista, o motivo de Dick e Jane nos alerta para o fato de que, em grande parte, a história será contada a partir da perspectiva de uma criança. Assim como o livro didático de Dick e Jane ensina as crianças a ler, este romance trata de algo maior: como as crianças aprendem a interpretar o mundo ao seu redor.”
A análise continua e já peço desculpas por essas imensas citações:
“Mas há algo errado com a narrativa de Dick e Jane da forma como é apresentada aqui. Como as frases não estão espaçadas com imagens, como estariam em um livro infantil real, tomamos consciência do quão curtas e abruptas elas são. O parágrafo formado por essas frases carece de coesão; não fica claro como cada observação individual se conecta à anterior. Da mesma forma, as crianças deste romance não possuem meios para conectar as experiências fragmentadas e, muitas vezes, assustadoras que compõem suas vidas. O conteúdo da narrativa, embora escrito em uma linguagem resolutamente alegre, também é perturbador. Embora nos seja dito que a família que vive na bela casa é feliz, Jane está isolada. Seus pais e até seus animais de estimação não apenas se recusam a brincar com ela, mas parecem evitar qualquer comunicação direta. Quando Jane se aproxima da mãe para brincar, a mãe simplesmente ri, o que nos faz questionar se ela é realmente "muito gentil", como nos foi dito. Quando pede ao pai para brincar, ele apenas sorri. A falta de conexão entre as frases reflete a falta de conexão entre os indivíduos nesta história.”
Estaéacasaéverdebrancatemumaportavermelhaémuitobonitaestaéafamíliaamã
eopaidickejanemoramnacasabrancaeverdeelessãomuitofelizesvejaajaneelaestáde
vestidovermelhoelaquerbrincarquemvaibrincarcomjanevejaogatoestámiandoven
A escrita de Toni Morrison é de extrema sensibilidade e poesia. Com essa história divida por estações, resta a nós decidir se continuamos cúmplices dessa terra estéril ou se ousamos reimaginar um solo onde todas as flores possam enfim florescer.
Me acompanhe no Instagram: @leiturasdagabrielle