mikesparrow's profile picture

mikesparrow 's review for:

Apologia do Ócio by Robert Louis Stevenson
5.0

Existe uma classe de pessoas, vulgares e quase-mortas, que mal têm consciência de
estarem vivas excepto em pleno exercicio de alguma ocupação convencional. Levem um destes individuos ao campo, ou numa viagem marítima, e vereis como anseia por regressar à secretária ou ao gabinete. São desprovidos de curiosidade; não conseguem entregar-se a paixões momentâneas;

Como se a alma humana não fosse já demasiado pequena, encolheram as suas ainda mais, com uma vida inteira de trabalho e pouco ócio;

Os prazeres são mais proveitosos que os deveres, porque, tal como a virtude da misericórdia, não são forçados e oferecem uma dupla bênção. Duas pessoas bastam para um beijo, enquanto uma festa admite uma dúzia; mas sempre que existe um elemento de sacrifício o favor é conferido com sofrimento e, entre pessoas generosas, recebido com confusão. Não há dever
tão subestimado como o dever de ser feliz (...)
Um homem ou mulher feliz é uma
descoberta mais afortunada do que uma nota de cinco. Ele ou ela tornam-se um foco que irradia boa vontade; e quando entram numa sala é como se uma segunda candeia se alumiasse. Não é importante sabermos se seriam capazes de enunciar o quadra-
gésimo sétimo problema, pois fazem algo mais valioso que isso, demonstrando na prática o grande Teorema da Vivibilidade da Vida. Consequentemente, se uma pessoa não consegue ser feliz sem ser ociosa, então ociosa deve permanecer.

Pouco me importa que trabalhe tanto ou tão bem, um indivíduo assim é uma mancha perversa nas vidas dos outros. (...)
E no entanto vemos mercadores que se esforçam por acumular grandes fortunas e acabam no tribunal das falências; escribas
que laboram nos seus pequenos artigos ate que o seu temperamento se transforma numa cruz para todos carregarem, como se o Faraó tivesse ordenado aos escravos que fabricassem agulhas em vez de erguerem pirâmides; e jovens que trabalham até à morte, para serem transportados em carros fúnebres adornados com plumas brancas. Não é de supor que algum mestre-de-cerimónias terá sussurrado aos seus ouvidos a promessa de um destino magní-
fico? E que essa tépida bala pela qual viveram uma farsa se dirigia ao centro do universo inteiro?

------------------------------------------

Não há lei que chegue ao Parlamento sem que antes tenha sido preparada pelo grande júri dos conversadores; livro algum é publicado que não tenha sido es crito
com a sua inestimável colaboração. A literatura, em todas as suas vertentes, não é senão a sombra de uma boa conversa; mas essa imitação fica muito aquém do original em vitalidade, liberdade e efeito.

Em último lugar, enquanto a literatura, amordaçada com um trapo de seriguilha, apenas pode tratar de uma fraccão da vida humana, uma conversa pode libertar-se
e chamar os bois pelos nomes. Não consegue, mesmo que o quisesse, tornar-se meramente estética oumeramente clássica, como a literatura. Uma laracha intromete-se, a impostura é dissolvida pelo riso, e as palavras emancipam-se dos seus trilhos con-
temporâneos, desbravando o campo aberto da natureza, alegres e bem-dispostas, como rapazes fora da escola.

Na verdade, a conversa é, ao mesmo tempo, o cenário e o instrumento da amizade.

Existem, aliás, poucos temas; e, dentro dos
que são genuinamente merecedores de provocar uma conversa, mais de metade podem ser reduzidos a três: que eu sou eu, que tu és tu, e que há outras pessoas que percebemos vagamente serem diferentes
de nós dois. Por maior distância que uma conversa percorra, andará quase sempre por estes caminhos eternos. E quando o tema é estabelecido, cada um toca a sua própria personalidade como um instrumento; afirma e justifica-se; saqueia o seu cérebro à procura de exemplos e opiniões, e exibe-os cunhados de fresco, para sua própria surpresa e consternação do adversário. Toda a conversa natural é um festival de ostentação; e faz parte das regras do jogo
que cada um aceite e inflame as vaidades do outro. É por esse motivo que arriscamos tão vulnerável exposição, que nos atrevemos a ser tão ternamente eloquentes, e que assumimos perante o olhar do outro uma dimensão tão vasta. Pois quem conversa, ao atingir o seu ritmo, começa a extravasar os limites da personalidade quotidiana, elevando-se às alturas das suas secretas pretensões, e transformando-se a figura heróica, corajosa, piedosa, artística e sábia
que, nos seus momentos mais arrebatados, aspira a ser. E assim tece com palavras, e por momentos habita, um palácio das delícias, simultaneamente
palco e templo, onde completa o círculo dos dignitários do mundo, e se senta à mesa com os deuses, exultando na aclamação geral. E quando a conversa termina, cada um segue o seu caminho, ainda com o rubor da vaidade e admiração no rosto, ainda arrastando atrás de si nuvens de glória; cada um desce do pedestal que idealizou, não de repente, mas num lento declínio.

A conversa é uma criatura da rua e do
mercado, que se alimenta de bisbilhotices; e mesmo o seu último recurso não deixa de ser um debate moral. Essa é a forma heróica da bisbilhotice; heróica em virtude das suas elevadas pretensões; mas bisbilhotice ainda assim, pois o seu alvo são perso-
nalidades. Dois homens em conversa estão condenados, mais tarde ou mais cedo -
mais cedo caso sejam escoceses -
a envolver-se numa discussão moral ou
teológica. Estas são, para o mundo em
geral, o que as discussões sobre leis são para os advogados; são as questões de ordem técnica que todos compreendemos; o meio através do qual tecemos considerações sobre a vida, e o dialecto que
usamos para emitir julgamentos. Conheço três jovens amigos que todos os dias durante dois meses passeavam juntos pela floresta durante um belo Verão de céus limpos: diariamente conversavam com incessante entusiasmo, e raramente se afastaram de dois temas- teologia e amor. E no entanto, creio que nem um tribunal do amor nem uma assembleia de teólogos concordaria com uma única das suas premissas ou conclusões. Não se chega, na verdade, a conclusões no decorrer de uma conversa com maior frequência do que
acontece em pensamentos privados. Nem é esse o objectivo. O proveito reside no exercício, e acima de tudo na experiência; pois quando raciocinamos demoradamente sobre qualquer assunto, passamos em revista a nossa própria condição e trajectória na vida. De quando em vez, no entanto, e especialmente, creio, em conversas sobre arte, a conversa torna-se eficaz, capaz de conquistas como a guerra, e de alargar as fronteiras do conhecimento como a exploração. Coloca-se uma questão; esta assume uma dimensão problemática, desconcertante, e todavia estimulante; os conversadores começam a pressentir uma conclusão próxima; avançam nessa direcção com ardor partilhado, cada um pelo seu caminho, disputando o direito de lá chegar primeiro; e depois um deles atinge o cume do assunto com um grito, e quase ao mesmo tempo o outro junta-se a ele; e, olhai!, ambos concordam. Ainda assim, o progresso é ilusório, um mero castelo de cartas, erguido e derrubado com palavras. Mas a sensação
de descoberta mútua não deixa de ser estonteante e inspiradora. E na vida de um conversador, tais triunfos, ainda que imaginários, não são poucos nem raros; são sempre alcançados com velocidade
e prazer, numa ocasião alegre; e, pela própria natureza do processo, são sempre proveitosamente partilhados.

Há uma certa atitude, ao mesmo tempo combativa e deferente, ansiosa pela disputa, mas adversa à discussão, que distingue de imediato o género de homem com quem se pode conversar. Não se trata de eloquência, nem obstinação, mas de uma mistura proporcional de todos estes atributos, que mais gosto de identificar nos meus adversários amigáveis. Não devem ser como pontífices a doutrinar, mas como caçadores seguindo o rasto de alguns elementos da verdade. Nem devem ser como rapazes
à espera de instrução, mas como colegas professores, com quem eu possa debater e concordar de igual para igual. Devemos chegar a uma solução, a alguma sombra de consenso; pois, sem isso, a conversa torna-se uma tortura. Mas também não devemos querer lá chegar gratuitamente, ou demasiado depressa, sem o esforço e a peleja que são a fonte do prazer.

Com ambos, é possível passar dias a fio numa terra encantada, com pessoas, paisagens e costumes próprios; viver
uma vida paralela, mais árdua, activa e incandescente que qualquer existência real; e regressar de novo quando a conversa termina, como quem sai de um teatro ou
desperta de um sonho, para descobrir que
o vento ainda sopra de leste e que as chaminés da velha cidade decrépita ainda se erguem à nossa volta.

Há frases dele nas quais conseguiu estampar a sua personalidade no próprio grão da linguagem; quase acreditamos que usou as palavras no corpo e dormiu com elas.

Na primeira, é radiosamente educado e até algo silencioso, como se sentado num trono no topo de uma colina, abençoando-nos com as suas observações como se fossem favores reais. Nunca parece implicado nas nossas contendas terrenas; não mostra qualquer sinal de interesse; e de repente deixa cair um pequeno cristal de perspicá-
cia, tão subtil que os mais obtusos nem dão conta, mas tão apropriado que os mais sensíveis se remetem ao silêncio.


Descansam pouco, é verdade; mas o sossego é virtude do gado.

Outros procuram numa conversa não tanto o conhecimento ou a clareza de pensamento, mas o contacto com os seus congéneres. É o drama da vida, e não a sua filosofia, que lhes estimula a actividade intelectual. Mesmo quando buscam a verdade, desejam
tanta paisagem humana quanto possivel ao longo da viagem.

Mas a superioridade das mulheres está perpetuamente sob ameaça; ao contrato dos mais velhos, não podem repousar no trono das suas enfermidades; são súbditos, além de soberanos.