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A insustentável leveza do ser
by Milan Kundera
A força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma outra luz e dá-Ihe um sentido mais Iato: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com o outro não só a sua infelicidade mas sentir também todos os seus outros sentimentos: alegria, angústia, felicidade, dor. Esta compaixão (...) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afectiva, ou seja, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.
Num outro ciclo de sonhos, era condenada à morte. Numa noite em que acordara a gritar de terror, contou-lhe o seguinte sonho: «Havia uma grande piscina coberta. Éramos mais ou menos vinte. Só mulheres. Estávamos todas completamente nuas e tínhamos de marchar a passo à volta da água. Havia uma cesta pendurada no tecto e estava um homem lá dentro. Tinha um chapéu de abas largas que lhe escondiam a cara, mas eu sabia que eras tu. Davas-nos ordens. Gritavas. Tínhamos que desfilar a cantar e a flectir os joelhos. Quando uma das mulheres não fazia bem a flexão, tu disparavas a pistola e ela caía morta na água. Nesse momento, as outras desatavam todas a rir e punham-se a cantar ainda mais alto. E tu, tu não tiravas os olhos de nós; se alguma fazia um movimento de través, abatia-la imediatamente. A água estava cheia de cadáveres a flutuar. E eu, eu sabia que já não tinha forças para fazer a flexão seguinte e que tu me ias matar!»
Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto, desembaraçar-se de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de um pai. Só lhe ficara o medo das mulheres. Desejava-as, mas elas atemorizavam-no. Entre o medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que chamava «amizade erótica». Dizia peremptoriamente às amantes: só uma relaçâo expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos.
No momento em que sente a volúpia espalhar-se-lhe pelo corpo, Franz dissolve-se no infinito da sua obscuridade, ele próprio se transforma em infinito. Mas quanto mais um homem cresce na sua obscuridade interior, mais diminuído fica na sua aparência física. Um homem de olhos fechados não é senão um rebotalho de si próprio. Como não quer assistir a isso, Sabina também fecha os olhos. Para ela, a obscuridade não é o infinito. Fecha os olhos porque quer separar-se do que está a ver, porque quer negá-lo. Recusa-se a ver.
O que encontrara inesperadamente naquela igreja não fora Deus, mas a beleza. Ao mesmo tempo, tinha perfeita consciência que aquela igreja e aquelas litanias não eram belas em si mesmas, mas que a sua beleza lhes vinha do contraste com os Estaleiros da Juventude onde os seus dias se passavam no meio da barulheira infernal das canções. A missa era bela por lhe ter aparecido súbita e clandestinamente como um mundo traído.
Aprendeu nesse dia que a beleza é um mundo traído. Só podemos encontrá-la quando aqueles que a perseguem a deixam por engano num sítio qualquer. A beleza esconde-se atrás dos cenários de um desfile do 1° de Maio. Para dar com ela, primeiro é preciso furar a tela do cenário.
Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.
Até aqui, os momentos de traição exaltavam-na e ficava sempre cheia de alegria só à ideia do novo caminho que se abria e da aventura sempre nova da traição que a esperava no fim da viagem. Mas que aconteceria se a viagem acabasse? Pais, maridos, amores, pátrias podem trair-se, mas o que resta para trair quando já não houver pais, nem marido, nem amor, nem pátria?
Sabina sentia um grande vazio em torno de si. E se esse vazio fosse precisamente o fim de todas as traições?
Quando se encontram a sós no quarto, às vezes, a sua jovem amiga levanta a cabeça do livro e poisa um olhar interrogativo sobre ele: «Em que estás tu a pensar?»
Franz está sentado num sofá com os olhos perdidos no tecto. Responda o que responder, está certamente a pensar em Sabina.
Quando publica um trabalho numa revista cientifica, a sua universitariazinha é sempre a primeira a lê-lo e quer discuti-lo imediatamente com ele. Mas ele, ele só pensa no que Sabina diria do texto. Tudo quanto faz, fá-lo para Sabina e de uma forma de que Sabina gostasse.
É uma infidelidade muito inocente, talhada à medida de Franz, que é incapaz de fazer mal à sua universitariazinha de óculos. O culto de Sabina que pratica tem muito menos a ver com o amor do que com a religião.
Mas, não nos enganemos! Não procura vingar-se de Tomas. Só procura uma saída para o labirinto onde se encontra perdida. Sabe que lhe é pesada: leva as coisas demasiado a sério, leva tudo para o trágico, não consegue compreender a leveza e a alegre futilidade do amor físico. Gostava tanto de aprender a leveza! Gostava tanto que lhe ensinassem a deixar de ser anacrónica!
Se, para outras mulheres, a coquetterie é uma segunda natureza, uma rotina insignificante, para Tereza, daqui em diante ela será o campo de uma importante investigação que deve fazer-lhe descobrir aquilo de que é capaz. Mas por ser assim tão importante, assim tão grave, a sua coquetterie perdeu toda a leveza, é forçada, expressamente convocada, excessiva. Rompeu-se o equilíbrio entre a promessa e a falta de garantias (no qual reside precisamente o autêntico virtuosismo da coquetterie!). Promete, mas sem a clareza suficiente, para fazer ver que a sua promessa não a compromete a nada. Ou, dito de outra maneira, todos julgam que é uma mulher extraordinariamente fácil. E depois, quando os homens reclamam o pagamento daquilo que pensam que lhes foi prometido, deparam com uma resisténcia inesperada que só pode encontrar explicação na refinada crueldade de Tereza.
O homem não tentou forçá-la e agarrou-a pelo braço. Caminhavam pelo imenso relvado e Tereza nunca mais se decidia a escolher a árvore junto da qual morreria. Ninguém a obrigava a ter pressa, mas ela sabia que, acontecesse o que acontecesse, não podia escapar. Vendo à sua frente um castanheiro em flor, aproximou-se dele. Encostou-se ao tronco e levantou a cabeça: viu a folhagem atravessada pelos raios de sol e, muito ao longe, ouviu a cidade a murmurar debilmente, docemente, como se o seu murmúrio fosse o rumor de mil e um violinos a tocar;
O homem ergueu a espingarda.
Ela já tinha perdido a coragem toda. Sentia-se desesperada com a sua fraqueza, mas não conseguiu dominá-la. Disse: «Não! Não é de minha livre vontade!»
Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possivel para o paraiso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito boa gente por causa disso. Mais tarde, tomou-se claro como a luz do dia que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas eram assassinos.
Então todos caíram em cima dos comunistas: eles é que cram responsáveis pela desgraça do país (que se encontrava pobre e arminado), pela perda da independéncia nacional (o pais tinha caido sob a alçada dos russos), pelos homicídios judiciais!
O debate resumia-se, portanto, a uma questão: os comunistas não saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de nada?
Os homens que têm a mania das mulheres dividem-se facilmente em duas categorias. Uns procuram em todas as mulheres a ideia que eles próprios têm da mulher tal como ela lhes aparece em sonhos, o que é algo de subjectivo e sempre igual. Aos outros, move-os o desejo de se apoderarem da infinita diversidade do mundo feminino objectivo.
A obsessão dos primeiros é uma obsessão lírica; o que procuram nas mulheres não é senão eles próprios, não é senão o seu próprio ideal, mas, ao fim e ao cabo, apanham sempre uma grande desilusão, porque, como sabemos, o ideal é precisamente o que nunca se encontra. Como a desilusão que os faz andar de mulher em mulher dá, ao mesmo tempo, uma espécie de desculpa melodramática à sua inconstância, não poucos corações sensíveis acham comovente a sua perseverante poligamia.
A outra obsessão é uma obsessão épica e as mulheres não vêem nela nada de comovente: como o homem não projecta nas mulheres um ideal subjectivo, tudo tem interesse e nada pode desiludi-lo. E esta impossibiliade de desilusão encerra em si algo de escandaloso. Aos olhos do mundo, a obsessão do femeeiro épico não tem remissão (porque não é resgatada pela desilusão).
Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os amigos causam-lhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre pelo mesmo nome.
Na sua caça ao conhecimento, os femeeiros épicos (e é evidentemente a esta categoria que Tomas pertence) afastam-se cada vez mais da beleza feminina convencional (de que depressa se cansam) e acabam infalivelmente como colecionadores de curiosidades. Têm consciência de tal coisa, envergonham-se um pouco dela, e, para não incomodar os amigos, nunca aparecem em público com as amantes.
Sabia que não devia acordá-la e que devia voltar a conduzi-la para o sono; tentou responder-lhe com palavras que lhe acendessem na cabeça a faúlha de um novo sonho.
«Estou a olhar para as estrelas, disse ele.
-Não me mintas, tu não estás a olhar para as estrelas, tu estás a olhar para baixo.
-Mas, como vamos num avião; as estrelas estão por baixo de nós.
-Ah!», disse Tereza. Apertou ainda com mais força a mão de Tomas e voltou a adormecer. Tomas sabia que, agora, Tereza estava a olhar pela janela de um avião que voava tão alto que ia por cima das estrelas.
Também era a primeira vez que os acordava! Esperava sempre que um dos dois acordasse antes de saltar para a cama.
Mas, desta vez, não se contivera quando, de repente a meio da noite, ficara finalmente acordado de todo De que longínquas paragens voltaria? Que espectros teria enfrentado? E agora, ao perceber que estava em casa, ao reconhecer os seres que lhe eram mais familiares, não conseguiu conter-se e teve de comunicar-lhe a sua terrível alegria, a alegria que lhe dava estar de regresso e ter nascido outra vez.
Se, em vez de ser um cão, Karenine fosse um ser humano, certamente que já teria dito a Tereza há muito tempo: «Ouve lá, já estou farto de vir todos os dias com um croissant na boca. Não és capaz de me arranjar outra coisa? » Nesta frase, encontra-se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição.
Num outro ciclo de sonhos, era condenada à morte. Numa noite em que acordara a gritar de terror, contou-lhe o seguinte sonho: «Havia uma grande piscina coberta. Éramos mais ou menos vinte. Só mulheres. Estávamos todas completamente nuas e tínhamos de marchar a passo à volta da água. Havia uma cesta pendurada no tecto e estava um homem lá dentro. Tinha um chapéu de abas largas que lhe escondiam a cara, mas eu sabia que eras tu. Davas-nos ordens. Gritavas. Tínhamos que desfilar a cantar e a flectir os joelhos. Quando uma das mulheres não fazia bem a flexão, tu disparavas a pistola e ela caía morta na água. Nesse momento, as outras desatavam todas a rir e punham-se a cantar ainda mais alto. E tu, tu não tiravas os olhos de nós; se alguma fazia um movimento de través, abatia-la imediatamente. A água estava cheia de cadáveres a flutuar. E eu, eu sabia que já não tinha forças para fazer a flexão seguinte e que tu me ias matar!»
Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto, desembaraçar-se de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de um pai. Só lhe ficara o medo das mulheres. Desejava-as, mas elas atemorizavam-no. Entre o medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que chamava «amizade erótica». Dizia peremptoriamente às amantes: só uma relaçâo expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos.
No momento em que sente a volúpia espalhar-se-lhe pelo corpo, Franz dissolve-se no infinito da sua obscuridade, ele próprio se transforma em infinito. Mas quanto mais um homem cresce na sua obscuridade interior, mais diminuído fica na sua aparência física. Um homem de olhos fechados não é senão um rebotalho de si próprio. Como não quer assistir a isso, Sabina também fecha os olhos. Para ela, a obscuridade não é o infinito. Fecha os olhos porque quer separar-se do que está a ver, porque quer negá-lo. Recusa-se a ver.
O que encontrara inesperadamente naquela igreja não fora Deus, mas a beleza. Ao mesmo tempo, tinha perfeita consciência que aquela igreja e aquelas litanias não eram belas em si mesmas, mas que a sua beleza lhes vinha do contraste com os Estaleiros da Juventude onde os seus dias se passavam no meio da barulheira infernal das canções. A missa era bela por lhe ter aparecido súbita e clandestinamente como um mundo traído.
Aprendeu nesse dia que a beleza é um mundo traído. Só podemos encontrá-la quando aqueles que a perseguem a deixam por engano num sítio qualquer. A beleza esconde-se atrás dos cenários de um desfile do 1° de Maio. Para dar com ela, primeiro é preciso furar a tela do cenário.
Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.
Até aqui, os momentos de traição exaltavam-na e ficava sempre cheia de alegria só à ideia do novo caminho que se abria e da aventura sempre nova da traição que a esperava no fim da viagem. Mas que aconteceria se a viagem acabasse? Pais, maridos, amores, pátrias podem trair-se, mas o que resta para trair quando já não houver pais, nem marido, nem amor, nem pátria?
Sabina sentia um grande vazio em torno de si. E se esse vazio fosse precisamente o fim de todas as traições?
Quando se encontram a sós no quarto, às vezes, a sua jovem amiga levanta a cabeça do livro e poisa um olhar interrogativo sobre ele: «Em que estás tu a pensar?»
Franz está sentado num sofá com os olhos perdidos no tecto. Responda o que responder, está certamente a pensar em Sabina.
Quando publica um trabalho numa revista cientifica, a sua universitariazinha é sempre a primeira a lê-lo e quer discuti-lo imediatamente com ele. Mas ele, ele só pensa no que Sabina diria do texto. Tudo quanto faz, fá-lo para Sabina e de uma forma de que Sabina gostasse.
É uma infidelidade muito inocente, talhada à medida de Franz, que é incapaz de fazer mal à sua universitariazinha de óculos. O culto de Sabina que pratica tem muito menos a ver com o amor do que com a religião.
Mas, não nos enganemos! Não procura vingar-se de Tomas. Só procura uma saída para o labirinto onde se encontra perdida. Sabe que lhe é pesada: leva as coisas demasiado a sério, leva tudo para o trágico, não consegue compreender a leveza e a alegre futilidade do amor físico. Gostava tanto de aprender a leveza! Gostava tanto que lhe ensinassem a deixar de ser anacrónica!
Se, para outras mulheres, a coquetterie é uma segunda natureza, uma rotina insignificante, para Tereza, daqui em diante ela será o campo de uma importante investigação que deve fazer-lhe descobrir aquilo de que é capaz. Mas por ser assim tão importante, assim tão grave, a sua coquetterie perdeu toda a leveza, é forçada, expressamente convocada, excessiva. Rompeu-se o equilíbrio entre a promessa e a falta de garantias (no qual reside precisamente o autêntico virtuosismo da coquetterie!). Promete, mas sem a clareza suficiente, para fazer ver que a sua promessa não a compromete a nada. Ou, dito de outra maneira, todos julgam que é uma mulher extraordinariamente fácil. E depois, quando os homens reclamam o pagamento daquilo que pensam que lhes foi prometido, deparam com uma resisténcia inesperada que só pode encontrar explicação na refinada crueldade de Tereza.
O homem não tentou forçá-la e agarrou-a pelo braço. Caminhavam pelo imenso relvado e Tereza nunca mais se decidia a escolher a árvore junto da qual morreria. Ninguém a obrigava a ter pressa, mas ela sabia que, acontecesse o que acontecesse, não podia escapar. Vendo à sua frente um castanheiro em flor, aproximou-se dele. Encostou-se ao tronco e levantou a cabeça: viu a folhagem atravessada pelos raios de sol e, muito ao longe, ouviu a cidade a murmurar debilmente, docemente, como se o seu murmúrio fosse o rumor de mil e um violinos a tocar;
O homem ergueu a espingarda.
Ela já tinha perdido a coragem toda. Sentia-se desesperada com a sua fraqueza, mas não conseguiu dominá-la. Disse: «Não! Não é de minha livre vontade!»
Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possivel para o paraiso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito boa gente por causa disso. Mais tarde, tomou-se claro como a luz do dia que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas eram assassinos.
Então todos caíram em cima dos comunistas: eles é que cram responsáveis pela desgraça do país (que se encontrava pobre e arminado), pela perda da independéncia nacional (o pais tinha caido sob a alçada dos russos), pelos homicídios judiciais!
O debate resumia-se, portanto, a uma questão: os comunistas não saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de nada?
Os homens que têm a mania das mulheres dividem-se facilmente em duas categorias. Uns procuram em todas as mulheres a ideia que eles próprios têm da mulher tal como ela lhes aparece em sonhos, o que é algo de subjectivo e sempre igual. Aos outros, move-os o desejo de se apoderarem da infinita diversidade do mundo feminino objectivo.
A obsessão dos primeiros é uma obsessão lírica; o que procuram nas mulheres não é senão eles próprios, não é senão o seu próprio ideal, mas, ao fim e ao cabo, apanham sempre uma grande desilusão, porque, como sabemos, o ideal é precisamente o que nunca se encontra. Como a desilusão que os faz andar de mulher em mulher dá, ao mesmo tempo, uma espécie de desculpa melodramática à sua inconstância, não poucos corações sensíveis acham comovente a sua perseverante poligamia.
A outra obsessão é uma obsessão épica e as mulheres não vêem nela nada de comovente: como o homem não projecta nas mulheres um ideal subjectivo, tudo tem interesse e nada pode desiludi-lo. E esta impossibiliade de desilusão encerra em si algo de escandaloso. Aos olhos do mundo, a obsessão do femeeiro épico não tem remissão (porque não é resgatada pela desilusão).
Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os amigos causam-lhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre pelo mesmo nome.
Na sua caça ao conhecimento, os femeeiros épicos (e é evidentemente a esta categoria que Tomas pertence) afastam-se cada vez mais da beleza feminina convencional (de que depressa se cansam) e acabam infalivelmente como colecionadores de curiosidades. Têm consciência de tal coisa, envergonham-se um pouco dela, e, para não incomodar os amigos, nunca aparecem em público com as amantes.
Sabia que não devia acordá-la e que devia voltar a conduzi-la para o sono; tentou responder-lhe com palavras que lhe acendessem na cabeça a faúlha de um novo sonho.
«Estou a olhar para as estrelas, disse ele.
-Não me mintas, tu não estás a olhar para as estrelas, tu estás a olhar para baixo.
-Mas, como vamos num avião; as estrelas estão por baixo de nós.
-Ah!», disse Tereza. Apertou ainda com mais força a mão de Tomas e voltou a adormecer. Tomas sabia que, agora, Tereza estava a olhar pela janela de um avião que voava tão alto que ia por cima das estrelas.
Também era a primeira vez que os acordava! Esperava sempre que um dos dois acordasse antes de saltar para a cama.
Mas, desta vez, não se contivera quando, de repente a meio da noite, ficara finalmente acordado de todo De que longínquas paragens voltaria? Que espectros teria enfrentado? E agora, ao perceber que estava em casa, ao reconhecer os seres que lhe eram mais familiares, não conseguiu conter-se e teve de comunicar-lhe a sua terrível alegria, a alegria que lhe dava estar de regresso e ter nascido outra vez.
Se, em vez de ser um cão, Karenine fosse um ser humano, certamente que já teria dito a Tereza há muito tempo: «Ouve lá, já estou farto de vir todos os dias com um croissant na boca. Não és capaz de me arranjar outra coisa? » Nesta frase, encontra-se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição.