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Ficções: de humor by Enrique Jardiel Poncela, Marquis de Sade, O. Henry, Mario Benedetti, Luísa Costa Gomes, Woody Allen, Raymond Queneau, James Thurber, Boris Vian, Alexandre O'Neill, Dezső Kosztolányi, P.G. Wodehouse, Giovanni Boccaccio, Saki, Jerome K. Jerome, Fyodor Dostoevsky, Ring Lardner
4.0

"(...) Leocadia entrou no café levantando ao passar, por obra de sua acaba formusura, uma onda de requebros e de ressuspiros masculinos.
Leocadia chegou ao pé de mim, estendeu-me as mãos com o sorriso mais celestial que olhos humanos já viram, e deixou-se cair no divã com um chique indiscutível.
Pediu-me não me lembo o quê e falou-me dos nossos amores epistolares, de quão feliz pensava ser, como me amava já...
- Também te amo com toda minh'alma - disse-lhe, porque verdadeiramente assim era, pois até aí não tinha topado com mulher alguma que tivesse menos defeitos que ela.
- Que dizes? - perguntou.
- Que também te amo com toda a alma.
- Quê?
Vi a horrível verdade. Locadia era surda.
- Quê?
- Que também eu te amo com toda a minha alma! - repeti, gritando.
E arrependi-me em seguida, porque se viraram dez fregueses para me olharem, evidentemente incomodados.
- A sério que me amas? - perguntou, com essa maçadoria própria dos apaixonados e dos agentes de seguros de vida.
- Jura-mo!
- Juro!
- Quê?
- Juro!
- Diz lá que juras que me amas...
- Juro que te amo! - vociferei.
Olharam-me com ódio vinte freguese.
- Que idiota! - sussurrou um deles - Isto é que se chama amar de viva voz.
- Então - seguiu a minha amada, alheia à tormenta -, não te arrependes de que eu tenha vindo a Madrid?
- De modo nenhum! - gritei, decidido a enfrentar tudo, porque me pareceu estúpido sacrificar o meu amor à opinião de uns senhores que falavam do Governo.
- E agrado-te?
- Muito!
- Nas tuas cartas dizias que os meus olhos eram muito melancólicos. Ainda achas?
- Sim! - gritei, como se estivesse a dar uma conferência na Praça de Touros. - Os teus olhos são muito melancólicos!
- E as minhas pestanas?
- As tuas pestanas, reviradíssimas!
- E a minha figura?
- Muito elegante!
Todo o café nos olhava. Todas as conversas se calavam, só me ouviam a mim. Nas montras começaram a ver-se transeuntes curiosos que contemplavam a cena.
- O meu amor faz-te feliz?
- Muito feliz! Felicíssimo!
- E quando puderes abraçar-me?
- Quando puder abraçar-te hei-de crer que estreito ao coração todas as rosas de todas as roseiras do mundo!
- E quando me beijares?...
- Quando te beijar hei-de crer que encontrei um manancial onde fluirão confundidas as águas mais puras e doces de todos os mananciais!
Não sei quanto tempo continuei, afrontando os rigores da opinião alheia. Sei que, por fim, aproximou-se um guarda.
- Faça o favor de não escandalizar. (...)"