Scan barcode
A review by katya_m
Estado de Sítio by Albert Camus
"A PESTE
Ninguém pode ser feliz sem fazer mal aos outros. É a justiça deste mundo."
Quando em 2018 assisti a Estado de Sítio, esperava tudo menos a oportunidade de viver um cenário de tanta proximidade literal e cenográfica com esta peça. E, em papel ou no palco, a verdade é que a força do texto continua a ser fenomenal e a mensagem que Camus tanto se esforçou por transmitir permanece igualmente urgente. Pois o que aqui está em causa, e nos deve afligir, não é a peste (nem nenhuma outra epidemia), mas o Estado burocrático contemporâneo em que essa mesma peste atua como mais um dos muitos agentes que legítimam a repressão.
"O POVO
O Estado era ele, e agora ele já não é nada. O governador fugiu, e o Estado é a Peste.
NADA
Que pode isso fazer-vos? Peste ou governador, é sempre o Estado."
Cádiz, cidade sitiada.
A Peste, anunciada por um cometa, chega para governar.
"OUTRA VOZ
Na nossa época, ninguém acredita já em sinais, sarnoso! Somos inteligentes de mais para isso, felizmente.
OUTRA VOZ
Sim, e é dessa maneira que a gente quebra a cabeça. E estúpidos como porcos, é que somos. E aos porcos, faz-se uma sangria!"
Farta da libertinagem praticada pela Morte (A SECRETÁRIA), que mata sem regra, a Peste quer impor a ordem, e rapidamente submete os poderes instituídos, o clero, a lei...
"DIEGO
Tu servias a antiga lei. Nada tens a fazer com a nova.
O JUIZ
Eu não sirvo a lei pelo que ela diz, mas porque é a lei.
DIEGO
E se a lei for o crime?
O JUIZ
Se o crime se torna lei, deixa de ser crime.
DIEGO
E será preciso castigar a virtude!
O JUIZ
É preciso castigá-la, de facto, se ela tiver a arrogância de discutir a lei."
...subjuga sobretudo o nihilista (anarquista, ao contrário de Camus) que apenas deseja ver o caos substituir tudo o mais até que apenas reste o Nada:
"NADA
Li nos livros que vale mais ser cúmplice do céu que sua vítima. Por outro lado tenho a impressão de que o Céu não está em causa. Por pouco que os homens se dediquem a partir vidros e cabeças, tem de concordar que o bom Deus, aliás conhecedor dessa música, não passa de um menino do coro.
(...)
O JUÍZ CASADO
Então não acreditas em nada, infeliz?
NADA
Em nada deste mundo senão no vinho. E em nada do céu."
Assim, por força de um sistema em que se mantém o povo na ignorância, a peste inicia o controlo:
"O PRIMEIRO ALCAIDE
Que linguagem é essa, faz favor de me dizer?
A SECRETÁRIA
É para os habituar a um pouco de obscuridade. Quanto menos compreenderem, melhor se comportarão."
(...)
"A MULHER
Nunca percebi nada dessa linguagem. O diabo fala assim e ninguém o entende!
NADA
Não é por acaso, mulher. Aqui trata-se de fazer com que ninguém se entenda, falando todos a mesma língua."
Dentre as suas ferramentas, a Peste institui a burocracia que levará o povo numa eterna caça aos gambozinos...
"O PESCADOR (que faz de corifeu)
Um certificado de existência? Para que serve?
A SECRETÁRIA
Para que serve? Como passaria você sem um certificado de existência para viver?
O PESCADOR
Até aqui, tínhamos vivido perfeitamente sem isso.
A SECRETÁRIA
É porque não eram governados. E agora são-no. E o grande princípio do nosso governo é precisamente o de se ter sempre necessidade de um certificado. Pode-se passar sem pão e sem mulher, mas um atestado em regra, e que certifique não importa quê, aí está uma coisa de que ninguém se pode privar!"
...e mecanismos de autoproteção que mascara de democracia:
"NADA
Os bons princípios dizem que o voto é livre. Quer dizer que os votos favoráveis ao governo serão considerados como sendo livremente expressos. Quanto aos outros, e a fim de eliminar os entraves secretos que poderiam opor-se à liberdade da escolha, serão descontados segundo o método preferencial, alinhando a diversidade divisionária com o quociente dos sufrágios não expressos em relação à terça parte dos votos eliminados. Creio que isto é muito claro."
No meio do caos que, efetivamente, se começa a fazer sentir, o medo, reinando constante, traz ao de cima o pior de cada um: o filho renega o pai; o amante foge da amada; o crente desdiz da sua fé.
Será apenas quando alguém (o herói) erguer a sua voz acima do caos e a favor dos valores humanos que a tragédia terá um fim:
"DIEGO
Despe-te. Quando os homens de força deixam o uniforme e não são agradáveis de ver!
A PESTE
Talvez. Mas a sua força está em terem inventado o uniforme.
DIEGO
A minha está em tê-lo recusado."
Desde 2018, e cada vez mais, esta peça continua a deixar-me de cabelos em pé.
Ninguém pode ser feliz sem fazer mal aos outros. É a justiça deste mundo."
Quando em 2018 assisti a Estado de Sítio, esperava tudo menos a oportunidade de viver um cenário de tanta proximidade literal e cenográfica com esta peça. E, em papel ou no palco, a verdade é que a força do texto continua a ser fenomenal e a mensagem que Camus tanto se esforçou por transmitir permanece igualmente urgente. Pois o que aqui está em causa, e nos deve afligir, não é a peste (nem nenhuma outra epidemia), mas o Estado burocrático contemporâneo em que essa mesma peste atua como mais um dos muitos agentes que legítimam a repressão.
"O POVO
O Estado era ele, e agora ele já não é nada. O governador fugiu, e o Estado é a Peste.
NADA
Que pode isso fazer-vos? Peste ou governador, é sempre o Estado."
Cádiz, cidade sitiada.
A Peste, anunciada por um cometa, chega para governar.
"OUTRA VOZ
Na nossa época, ninguém acredita já em sinais, sarnoso! Somos inteligentes de mais para isso, felizmente.
OUTRA VOZ
Sim, e é dessa maneira que a gente quebra a cabeça. E estúpidos como porcos, é que somos. E aos porcos, faz-se uma sangria!"
Farta da libertinagem praticada pela Morte (A SECRETÁRIA), que mata sem regra, a Peste quer impor a ordem, e rapidamente submete os poderes instituídos, o clero, a lei...
"DIEGO
Tu servias a antiga lei. Nada tens a fazer com a nova.
O JUIZ
Eu não sirvo a lei pelo que ela diz, mas porque é a lei.
DIEGO
E se a lei for o crime?
O JUIZ
Se o crime se torna lei, deixa de ser crime.
DIEGO
E será preciso castigar a virtude!
O JUIZ
É preciso castigá-la, de facto, se ela tiver a arrogância de discutir a lei."
...subjuga sobretudo o nihilista (anarquista, ao contrário de Camus) que apenas deseja ver o caos substituir tudo o mais até que apenas reste o Nada:
"NADA
Li nos livros que vale mais ser cúmplice do céu que sua vítima. Por outro lado tenho a impressão de que o Céu não está em causa. Por pouco que os homens se dediquem a partir vidros e cabeças, tem de concordar que o bom Deus, aliás conhecedor dessa música, não passa de um menino do coro.
(...)
O JUÍZ CASADO
Então não acreditas em nada, infeliz?
NADA
Em nada deste mundo senão no vinho. E em nada do céu."
Assim, por força de um sistema em que se mantém o povo na ignorância, a peste inicia o controlo:
"O PRIMEIRO ALCAIDE
Que linguagem é essa, faz favor de me dizer?
A SECRETÁRIA
É para os habituar a um pouco de obscuridade. Quanto menos compreenderem, melhor se comportarão."
(...)
"A MULHER
Nunca percebi nada dessa linguagem. O diabo fala assim e ninguém o entende!
NADA
Não é por acaso, mulher. Aqui trata-se de fazer com que ninguém se entenda, falando todos a mesma língua."
Dentre as suas ferramentas, a Peste institui a burocracia que levará o povo numa eterna caça aos gambozinos...
"O PESCADOR (que faz de corifeu)
Um certificado de existência? Para que serve?
A SECRETÁRIA
Para que serve? Como passaria você sem um certificado de existência para viver?
O PESCADOR
Até aqui, tínhamos vivido perfeitamente sem isso.
A SECRETÁRIA
É porque não eram governados. E agora são-no. E o grande princípio do nosso governo é precisamente o de se ter sempre necessidade de um certificado. Pode-se passar sem pão e sem mulher, mas um atestado em regra, e que certifique não importa quê, aí está uma coisa de que ninguém se pode privar!"
...e mecanismos de autoproteção que mascara de democracia:
"NADA
Os bons princípios dizem que o voto é livre. Quer dizer que os votos favoráveis ao governo serão considerados como sendo livremente expressos. Quanto aos outros, e a fim de eliminar os entraves secretos que poderiam opor-se à liberdade da escolha, serão descontados segundo o método preferencial, alinhando a diversidade divisionária com o quociente dos sufrágios não expressos em relação à terça parte dos votos eliminados. Creio que isto é muito claro."
No meio do caos que, efetivamente, se começa a fazer sentir, o medo, reinando constante, traz ao de cima o pior de cada um: o filho renega o pai; o amante foge da amada; o crente desdiz da sua fé.
Será apenas quando alguém (o herói) erguer a sua voz acima do caos e a favor dos valores humanos que a tragédia terá um fim:
"DIEGO
Despe-te. Quando os homens de força deixam o uniforme e não são agradáveis de ver!
A PESTE
Talvez. Mas a sua força está em terem inventado o uniforme.
DIEGO
A minha está em tê-lo recusado."
Desde 2018, e cada vez mais, esta peça continua a deixar-me de cabelos em pé.