A review by katya_m
Beloved by Toni Morrison

Um livro "murro no estômago" é aquilo de que precisamos para acordar da letargia de todos os dias. Beloved é um murro no estômago, entre muitas outras coisas boas e más. E Toni Morrison chega até ele fazendo uma engenhosa combinação entre lenda e sobrenatural, relato histórico e romance, amor e morte. Para não haver spoilers (este era um livro que leria vida fora se mais páginas tivesse), mas também porque ainda tenho o tão desejado nó na garganta que nos fica das boas, mas mesmo boas leituras, e sinto que tudo o que possa vir a dizer é redutor face à leitura do livro, deixo apenas algumas ideias breves.



Para Sethe, escrava liberta a viver no pós-Guerra de Secessão (não esqueçamos que as questões do esclavagismo e do racismo não acabam aqui), a memória da escravatura permanece viva e sem dar tréguas, e será ela a ditar o seu passado, o seu presente e o seu futuro.
Mãe destemida, mãe até ao mais ínfimo recanto do seu ser, Sethe, levada ao extremo da paixão por força das circunstâncias, será eternamente perseguida pelos fantasmas da filha sacrificada, Beloved, mas também de toda uma vida que podia ter sido, mas não foi.

"Amo a minha mãe mas sei que ela matou uma das próprias filhas, e por mais meiga que seja comigo, tenho medo dela por causa disso. Quase matou os meus irmãos e eles sabem isso.(...) tive medo que a coisa que aconteceu e que fez com que parecesse certo à minha mãe matar a minha irmã pudesse voltar a acontecer. Não sei o que é, não sei quem é, mas talvez haja qualquer outra coisa suficientemente terrível para fazer com que ela o faça de novo."
267

Porque os anos de perseguição, de tortura, de aniquilamento físico e espiritual, não lhe amputaram apenas uma filha ou um marido, um rol de pessoas e ligações que a tornavam um ser no meio de outros, mas a possibilidade de viver a vida maternal, geradora, criadora reservada às mulheres brancas. Por isso, Sethe - e que maravilhosa fuga aos estereótipos normais ela se apresenta - é uma criatura desesperada por amor, por amar e ser amada, desesperada pelo amparo e pela sensação de realização maternal completa.

"...chegar a um lugar onde se podia amar tudo aquilo que se escolhesse- sem precisar da autorização para o desejo -, ora bem, isso era liberdade."
215

Assim, a materialização do fantasma de uma filha que morre às suas mãos é uma benção disfarçada para Sethe: a oportunidade de corrigir erros, a oportunidade de criar laços, a oportunidade de recuperar o tempo que lhe foi roubado...E será isso mesmo, apesar de tudo o mais que essa presença acarreta.
Pelo meio, a catarse terá de ser atingida por força do sofrimento, da consumição de um passado doloroso, e de mais e mais sacrifícios.

"Todas as coisas mortas que renascem sofrem."
52

No fim, Beloved não exagera nos efeitos, nem joga com a emoção desenfreada, como outros livros, mas fica como uma história de luta pela igualdade espiritual, uma história de laços injustamente cortados, de relações sacrificadas pelo capricho e a maldade de estranhos, mas, sobretudo, e essa é a sua maior qualidade, como um relato com uma força sobrenatural acerca do poder dos laços entre mãe e filha.