A review by rolandosmedeiros
Nothing to Be Frightened of by Julian Barnes

5.0

Aproveitar que nessa atualização do Goodreads ficou mais cômodo separar as resenhas por edições, e testar a funcionalidade:

— **A aposta de pascal; e a interessante forma do Nada a Temer: (28pp a 32pp):**

Partindo de memórias, Barnes narra episódios de seu passado, questões familiares, entraves pessoais, o anuviar da lembrança e a margem da ficção.

Neste, que é um dos curtos capítulos da primeira metade do livro (a maioria o são; sucintos, palatáveis) lembra de quando era estudante de universidade, e estagiou numa escola católica da Bretanha.

Lembra do encontro com um jovem padre de fervorosa fé, e parte de uma conversa com o rapaz — que ele guarda até mesmo tom e a frase proferida (isso vai ser problematizado depois pelo próprio Barnes, numa interessante questão sobre a ficção) — para chegar na aposta de Pascal.

A aposta de Pascal é simples, se acreditarmos em Deus e no fim Deus existir, ganhamos, se acreditarmos, e no fim Deus não existir, perdemos; mas, não tanto quanto se não acreditarmos e Ele existir.
“Talvez não seja tanto um argumento como uma tomada de posição interesseira (…)'' e emenda: "mas a primeira aposta, sobre a existência de Deus, depende duma segunda e simultânea aposta, sobre a natureza de Deus. E se Deus não for como o imaginamos? Se, por exemplo, Ele reprova os apostadores, principalmente aqueles cuja suposta crença n’Ele depende dum pensamento interesseiro? E quem decide quem ganha? Nós não: Deus pode preferir o cético honesto ao oportunista interesseiro."

Recorda então, de um episódio, em Kiev, julho de 2006, e narra brevemente: “no Jardim Zoológico de Kiev, um homem desceu por uma corda até à fossa murada onde estão os leões e os tigres. (…) ele [diz]: «Quem crê em Deus não será atacado pelos leões»; segundo outra, foi ainda mais provocador: «Se Deus existe, salvar-me-á.» então uma leoa irritada derrubou-o e, com os dentes, cortou-lhe a carótida. Isto provará: a) que o homem era louco; b) que Deus não existe; c) que Deus existe, mas não cai no engodo de se manifestar com truques tão baixos; d) que Deus existe mesmo e acaba de provar que pratica a ironia; e) ou nada disso?"

E vai (esse ir e vir de relatos, memórias, opiniões, narração, é constante em todo o livro) até um dos cadernos de Wittgenstein, e tira uma frase, que atinge um pensamento muito popular a nós brasileiros, ao menos é o que mais vejo a minha volta, num misto e mistura de religiões e superstições; aquele de que você deve acreditar porque mal não faz… “exceto,” diz Barnes, “o [mal] de não sermos verdadeiros, coisa que para alguns pode ser um mal irredutível e não negociável."

Soa como exagero, pois o é.
E o Barnes joga com isso.

A frase solta, ou a “a aposta, feita para parecer que não é aposta (…) [caso] fôssemos a divindade, ficaríamos um tanto indiferente a aval tão frouxo"ganha outro contexto, quando o intencionalmente o Barnes mostra de onde o tirou: "Wittgenstein foi professor de várias escolas em aldeias remotas do Sul da Áustria. Os habitantes locais achavam-no excêntrico e austero, mas dedicado aos alunos (…) Em Viena passaram dois dias a fazer o mesmo [passeio] com vários exemplos de arquitetura e tecnologia. Depois apanharam o comboio de volta a Gloggnitz. Quando ele chegou, caía a noite. Lançaram-se na caminhada de regresso, dezanove quilómetros. Wittgenstein, sentindo que muitas das crianças estavam assustadas, abeirou-se de cada uma e disse calmamente: «Estás com medo? Bom, então tens de pensar unicamente em Deus.» Encontravam-se, literalmente, numa floresta escura. «Vá, acredita! Mal não faz.» E provavelmente não fez."

**


Como ele mesmo diz, é um escritor transgênero. No sentido de: não lhe interessa convenções.

Eu fui atrás da notícia que ele cita de Kiev, e não existe; me parece uma invenção alá às do Borges. Mas pouco importa. A memória, também é duvidosa (em si): “o romancista (outra vez eu) está menos interessado na natureza exata dessa verdade e mais na natureza dos crentes; no modo como abraçam as crenças e na textura do terreno entre as narrativas concorrentes. Mesmo que seja ela que paute a maior parte do livro. “Um romancista é alguém que não se lembra de nada, mas regista e manipula versões diferentes daquilo de que não se lembra.”

“Para o escritor mais velho, memória e imaginação parecem diferenciar-se cada vez menos. Não é porque o mundo imaginado esteja realmente muito mais próximo da vida do escritor do que ele ou ela quer admitir (um erro comum entre os que dissecam a ficção)”


Isto é apenas um recorte. Só lendo mesmo, para você apreender a maneira como esse trecho, e muitos outros, de ficção e memória, dialogam com o ponto de vista do escritor Barnes de uma maneira mais ampla. Episódios de infância que modificam-se totalmente a partir de relatos de diferentes participantes, em um livro que tem como “superfície” e aí ele já é interessante, foi inclusive a minha razão de pegar para lê-lo, o tema da morte na visão de muitos escritores, parentes e filósofos do autor, que é o ponto de toda a minha outra resenha, bem mais pessoal.

“O meu irmão desconfia da maior parte das memórias. Eu não desconfio, prefiro ver nelas o labor da imaginação, que contém uma verdade imaginativa e se contrapõe à verdade naturalista. Ford Madox Ford podia dizer grandes mentiras e grandes verdades, ao mesmo tempo e na mesma frase.”