A review by katya_m
Vai e Põe Uma Sentinela by Harper Lee

As classificações de "Vai e põe uma sentinela" vão, da parte de quem conheço, do mais ou menos ao bom. Da minha parte, "Vai e põe uma sentinela" merece nada menos que um muito bom, as cinco estrelas e o patamar das melhores obras literárias de século XX ao lado do seu antecessor (ou predecessor se tivermos em conta a data da sua escrita) "Mataram a cotovia".

Muitos leitores ficarão decerto dececionados com as "descobertas" de Scout ao longo deste volume e, por isso mesmo, acredito que é um livro a ser lido com uma certa maturidade e traquejo para separar o trigo do joio.

Como bem começa:

"Jean Louise Finch costumava fazer aquela viagem de avião, mas na quinta deslocação anual para casa decidiu ir de comboio de Nova Iorque até ao ramal de Maycomb."

Jean Louise, assim nos garante a escritora, vai então entrar em casa com os pés assentes no chão e não mais como a Scout destrambelhada e aérea de antigamente.

E vejamos, esta "versão" desencantada de "Mataram a cotovia" é, na realidade, uma espécie de rascunho - muitíssimo trabalhado - do único texto que Harper Lee decide publicar em vida. Descrições, personagens, parágrafos inteiros nos são perfeitamente familiares se o lermos no seguimento do anterior. Mais que funcionar como sequela, "Vai e põe uma sentinela" funciona como ponto chave do processo criativo - como esboço preparatório para o título que a escritora pretende publicar. E o que muda neste livro face ao outro é, na realidade, o novo, adulto olhar com que a autora nos força a ler.

O velho Atticus Finch está lá como outrora - não se iludam se pensam que ele mudou um bocadinho que fosse -, o Jem - aquele Jem que nunca quisemos reconhecer distante, mas que sempre o foi -, a boa Calpurnia - e com ela todo um mundo de homens e mulheres recalcados sob os pés dos brancos que, naqueles outros tempos, os acolhiam como por caridade -, e o tio Jack - a outra face no espelho de Scout.

Todos, como outrora, são os mesmos. Nenhum, como outrora, é quem nós pensávamos ser.

Harper Lee, exímia a encaminhar os leitores, sabe exatamente onde nos deixar a cada passo. Cada linha é calculada em função da reação que pretende obter do leitor e a sua prosa trabalhada no sentido de nos fazer caminhar sobre as pegadas da sua inocente Scout. Por isso é duro para nós, como é para ela, perceber que o mundo não se compõe de dois espectros de cor, mas de vários matizes intermédios, e que a nossa inflexibilidade só nos trará, mais cedo ou mais tarde, a dor (muito necessária) dessa descoberta.

Como Scout, teremos de crescer e perceber que somos seres individuais os quais habita uma consciência única:

- (...)A ilha de cada um de nós, Jean Louise, a sentinela de cada um de nós é a sua consciência. A consciência coletiva, tal coisa não existe.
(...)
- ...agora tu, menina, nascida com a tua própria consciência, algures no teu caminho amarraste-a à do teu pai como uma lapa. Enquanto crescias e já em adulta, confundiste o teu pai com Deus. Nunca o visto como um homem, com o coração e os defeitos próprios de um homem(...) Foste uma aleijada emocional, apoiavas-te nele, era a ele que ias buscar as respostas, pressupondo que as tuas seriam sempre as dele.

[Pág. 229]

Como ela, é pelas pequenas coisas que iremos perceber que não somos perfeitos:

" - És daltónica, Jean Louise - declarou. - Sempre foste, sempre serás. As únicas diferenças que vês entre dois seres humanos são na aparência, na inteligência e na personalidade. Nunca foste incitada a olhar as pessoas enquanto raça, e agora que as questões raciais são o tema quente do dia, continuas incapaz de pensar nesses termos. Apenas vês pessoas.
- Mas, tio Jack, não tenho qualquer intenção de me casar com um negro.

[Pág. 233]

Harper Lee propõe-nos, uma vez mais, refletir não já as questões sociais per si, mas a questão das nossas escolhas e caminhos individuais em comunidade.

"O preconceito, que é uma palavra feia, e a fé, que é uma boa palavra, têm algo em comum: ambas começam onde a razão termina.'

[Pág.234]

Impossível atribuir-lhe menos de 5 estrelas, como ao anterior, pois que revela uma excelência e uma maturidade literária de Harper Lee que em nada fica a dever àquele um trabalho que ela decidiu dar à estampa.