You need to sign in or sign up before continuing.

tete1030 's review for:

Os Cadernos de Pickwick by Charles Dickens
4.0

Os Pickwick Papers, ou Os Cadernos de Pickwick, na edição portuguesa, conta a história de Samuel Pickwick, um velhote simpático e generoso, algo pomposo e ingénuo, que decide encetar uma viagem por Inglaterra com os seus amigos, os senhores Winkle, Tupman e Snodgrass, de maneira a ficar a conhecer melhor as gentes e os costumes do seu país, recolher várias histórias e delas dar conta aos membros do seu clube. Pelo caminho, Pickwick e os amigos metem-se em várias situações caricatas, conhecem pessoas de todos os tipos, envolvem-se com a justiça e mostram de que fibra são feitos. É, ainda, a primeira obra de Dickens, aquela que o tornou famoso, uma obra de tal modo adorada que já estava a ser adaptada para teatro antes de terminar e que até chegou a gerar merchandising próprio. A edição da Tinta da China, muito boa, por sinal, inicia a série de livros de comédia coordenada por Ricardo Araújo Pereira. Não poderia começar de melhor forma, este é um livro, verdadeiramente, divertido.

Antes de iniciar a leitura desta obra, o leitor tem de ter em mente que originalmente ela era um folhetim mensal e que a sua estrutura reflecte esta forma. É importante ter isto em mente porque, de outra maneira, poderá ficar com as suas expectativas goradas e a leitura pode-se tornar cansativa. A história é contada como se fosse baseada em factos reais, um apanhado que o narrador fez dos supostos cadernos do clube, já depois de este ter sido extinto, e que tentou organizar. Embora exista algum fio condutor e, no final, as coisas fiquem bem rematadas, não há um enredo coerente, a narrativa é episódica misturando momentos de comédia situacional pura com pequenos contos tragicómicos que tanto podem envolver cadeiras falantes como situações de violência doméstica. O início é algo lento, só comecei verdadeiramente a apreciar o humor e a distinguir as personagens quando já tinham passado umas boas 60 páginas e confesso que a meio comecei a perder a coragem e que tive de fazer um esforço para avançar, mas a culpa não é tanto do autor como da forma como o livro nos chegou às mãos.

Dizia alguém pelos comentários do Goodreads que ler este livro é um pouco como ver as modernas sitcoms e eu concordo em absoluto. Os Pickwick Papers não foram pensados para serem lidos de enfiada, mas ao longo de vários anos. Claro que nada nos impede de o lermos numas semanas, mas deparamo-nos, necessariamente e de forma mais evidente, com a repetitividade das situações e das piadas e com uma certa previsibilidade, que podem tornar a leitura aborrecida, porque não há aquele espaço de um mês ou semana para nos deixar com saudades e vontade de ler mais. As personagens, com a excepção do Sr. Pickwick e do magnífico, Sam Weller, que aparece mais à frente, e ninguém me convencerá que não é um proto-Sam do Senhor dos Anéis, são também bastante superficiais, mais caricaturas do que verdadeiras pessoas, e não têm verdadeira evolução. Mas esses são traços típicos da comédia, mais interessada em criar situações cómicas do que em fazer evoluir as personagens. As mulheres, em especial, as poucas que são relevantes, são particularmente atreitas a cair no estereótipo e são vistas, assim como a ideia do casamento, de uma forma muito negativa, de um modo que não consegui perceber exactamente se era um comentário de Dickens ou se foi simplesmente incapacidade ou desinteresse do autor em escrever mulheres de uma forma positiva...

Podia queixar-me de mais algumas coisitas, mas, no geral, o prazer que tive a ler este livro foi muito maior do que qualquer inconveniente que a sua extensão tenha provocado, mesmo que por vezes o tivesse de pôr de parte por não estar com cabeça para ele. A escrita é maravilhosa, Dickens tem algumas passagens de uma expressividade que nos deixa encantados e inebriados, como por exemplo quando fala sobre o Natal e a sua magia, ou quando descreve as paisagens inglesas durante o mês de Agosto. Mas a sua escrita é também acutilante, irónica, teatral e cheia de humor e vi-me, frequentemente, a rir alto enquanto lia, porque as situações que ele cria são verdadeiramente engraçadas. O Sr. Pickwick é amoroso (Fernando Pessoa chamava-lhe "uma das figuras sagradas da história mundial. Por favor, não se alegue que nunca existiu" e eu concordo) e Sam Weller é brilhante, o verdadeiro Sancho Pança para o Dom Quixote de Pickwick, uma comparação desde o princípio me apeteceu fazer, uma vez que me parece que este livro tem algo de quixotesco na sua própria estrutura. É, igualmente, incrível ver a versatilidade de Dickens, particularmente evidente na diversidade de contos que criou, como se estivesse ainda a experimentar os seus limites e a começar a desenvolver capacidades que foi aperfeiçoando na sua obra posterior. O problema maior é, como disse, que tudo se começa a tornar um pouco repetitivo a meio, por causa do seu formato e estrutura. Por isso, quem quiser ler o seu primeiro Dickens talvez esteja melhor a começar com uma obra com um pouco mais de enredo e um pouco menos de páginas.

Chegado quase ao fim do seu livro, no momento em que nos conta o destino de cada personagem, Dickens brinda-nos com esta frase maravilhosa: "Muitos dos homens que se misturam com o mundo e que chegam à idade madura são fadados para fazer muitos amigos e perdê-los segundo o curso natural das coisas. Todos os escritores ou cronistas são fadados para criar amigos imaginários e perdê-los segundo o curso da arte." Posso dizer que também eu, enquanto leitora, senti que me despedi de amigos ao acabar este livro. Deviam existir mais Srs. Pickwicks no mundo.