A review by mikesparrow
A sombra do que fomos by Luis Sepúlveda, Helena Pitta

3.0

"Estes dois homens que batiam nas costas um do outro tinham sido amigos e integrado o mesmo grupo de adeptos do futebol, da política e dos churrascos dos fins-de-semana. Fizeram planos para prolongar a amizade e conservá-la imune à passagem dos anos, e foram companheiros cúmplices no esforço de fazer do país um lugar, se não melhor, pelo menos não tão chato, até ter chegado aquela manhã chuvosa de Setembro e a partir do meio-dia os relógios começarem a marcar horas desconhecidas, horas de desconfiança, horas em que as amizades se desvaneciam, desapareciam, e delas não restava senão o pranto aterrorizado das viúvas ou das mães. A vida encheu-se de buracos negros que surgiam em qualquer parte: alguém entrava numa estação de metro e nunca mais saía, alguém entrava num táxi e não chegava a casa, alguém dizia luz e era engolido pelas sombras.
Muitos homens e mulheres que se conheciam negaram-se a si próprios numa epidemia de amnésia necessária e salvadora. Não, não conheço esses tipos que levam deitados num camião. Não, nunca vi essa mulher que espera na esquina.

O esquecimento foi uma necessidade urgente, é preciso mudar de passeio e evitar encontros, é preciso dar a volta rapidamente e retroceder. E tudo o que esteve grávido de futuro ficou, de repente, envenenado de passado."

"Conversavam, recuperavam o velho hábito de conversar à volta de um copo, olhavam uns para os outros sem qualquer receio, pois mais gordos ou mais magros, calvos ou com a barba grisalha, tinham a certeza de que ainda há certos tigres que não se importam de ter uma risca a mais ou a menos."