A review by neylane
Água Viva by Clarice Lispector

5.0

Como descrever uma pintura abstrata? E como descrever (e escrever) um livro abstrato? Se alguém me perguntasse eu diria que é algo que poucos escritores conseguiriam, e que entre esses poucos está Clarice Lispector.

Água Viva é sobre " ". Percebe que não existe exatamente uma explicação? É isso. Clarice é a melhor amiga das palavras, e aqui ela eleva isso exponencialmente. O livro é uma carta de um eu para um tu, uma carta de amor que divaga sobre tudo, com alegorias e metáforas, Clarice aqui está a mais pura possível, extrapolando seus pontos fortes como o fluxo de consciência e o monólogo (o livro inteiro é um monólogo). E é claro, uma escrita belíssima.

"Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas raízes de árvore descomunal, é assim que te escrevo, e essas raízes como se fossem poderosos tentáculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realização, e tudo isso é um prece de missa negra, e um pedido rastejante de amém: porque aquilo que é ruim está desprotegido e precisa da anuência de Deus: eis a criação."

O misticismo, até mesmo a heresia e a blasfêmia estão presentes nessas divagações. A eu lírico questiona Deus, sua existência, seus feitos. Ela é uma pintora que agora está arriscando escrever, e por isso temos tantas referências ao abstracionismo. O poder de criar algo que não usa nenhuma referência, não recria nada a não ser a essência da tinta, ou a essência da palavra: o elemento puro, que ela chama de "it".

"Se eu tivesse que me esforçar para te escrever ia ficar tão triste. Às vezes não aguento a força da inspiração. Então pinto abafado. É tão bom que as coisas não dependam de mim."

"É tão bom que as coisas não dependam de mim." Essa suposta impessoalidade que na verdade acaba sendo essencialmente o ser, sem nenhuma interferência externa, é tão difícil de descrever como uma obra abstrata. É um livro pra sentir e não procurar sentido. Assim como o expressionismo abstrato de Pollock ou Gorky, a escrita aqui tem uma criação espontânea, subjetivismo e emoção. Um livro modernista imerso em puro sentimento.

"se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita"

O livro é pequeno, menos de 100 páginas, mas contém uma Imensidão. Mais uma obra da Clarice que consegue me transportar para o indizível, ela tinha esse dom, "o melhor está nas entrelinhas".