A review by renato_rocha_oficial
The Little Drummer Girl: Now a BBC series by John le Carré

John le Carré seria "um dos grandes escritores ingleses" na prateleira de toda a gente se não tivesse o azar de trabalhar quase exclusivamente num género específico: thriller de espionagem. Thriller já soa mal: evoca paisagens dinamarquesas e serial killers americanos. Espionagem, é o que é: talvez só Graham Green seja respeitado como escritor, prosador, constructor de enredos e personagens; e o eterno Ian Fleming é mais famoso por simplificar o género do que propriamente por ultrapassá-lo. Le Carré não só ultrapassa o género, como o reinventa: a sua maior qualidade é a maneira como conta “histórias de espiões” sem que se reconheça, nos seus livros, aquilo a que muita gente associa com “histórias de espiões”. Há pouca pancadaria, poucas perseguições; “The Little Drummer Girl”, literalmente sobre um bombista, contém duas explosões em 640 páginas, e nenhuma delas no clímax. Há salas cinzentas com cheiro a tabaco e esperas à chuva e conversas que duram, e duram, e duram, até que a sua verdadeira função é revelada, muito subtilmente. Há passagens longas, mesmo longas, de gente a consultar documentos, ou planear operações. Há bifes de dezenas de páginas ao fim dos quais, finalmente, o leitor exclama "Eia pá! Já percebi!". Em vez disso, Le Carré interessa-se pelos bastidores, pelos detalhes operacionais, pelas negociatas nas sombras. O espião forte, de acção, que papa meninas de bikini ou salta de Berlim para a Tailândia em cinco minutos, é substituído por um outro tipo de herói. George Smiley, o seu Poirot ou James Bond, a sua maior criação, é um burocrata mal vestido e aborrecido, perpetuamente preso aos arquivos e às noitadas de interrogatórios, mastermind extraordinário de operações que dão muito, muito, muito trabalho, e que são descritas com um detalhe absurdo. Este tipo de espião, mais semelhante aos “espiões reais”, é paradoxalmente um “anti-espião” na cabeça do leitor comum, que não identifica nele as categorias habituais do herói de espionagem. Em “The Little Drummer Girl” não há Smiley mas, como em todos os outros romances de le Carré, o arquétipo está lá: neste caso Kurtz, um israelita de bigode, líder de uma equipa destinada a perseguir e apanhar um bombista Palestiniano que anda pela Europa a largar malas armadilhadas e a rebentar com os pobres judeus. O romance divide-se, por isso, entre duas linhas narrativas: Kurtz e as suas estratégias e operações no terreno, e a história de Charlie, uma jovem revolucionária de esquerda, actriz, recrutada pelos israelitas para fingir ser namorada do irmão do bombista e infiltrar-se no campo Palestiniano. Entretanto, a moça apaixona-se por Joseph, um tipo misterioso, que a treina e prepara para a sua missão (há que prepará-la para desempenhar, com convicção e substância, o papel de amante de um homem que nunca conheceu); e é através dos seus olhos que assistimos ao confronto entre os dois lados de várias dicotomias: europa e médio oriente, Israel e Palestina, espião e civil, ficção e verdade, será que os fins justificam os meios ou, pelo contrário, bla bla bla, etc. E ao contrário do típico thriller, que funciona só ao nível da acção e do conflicto, “The Little Drummer Girl” funciona a vários níveis, uns mais bem conseguidos que outros. É fantástica a descrição dos dois lados dicotómicos do conflicto (um ódio compensa o outro, e venha o diabo e escolha: quem merece mais aqueles hectares de deserto? A única conclusão é a impossibilidade de conclusão). É mais fraquita a vida interior de Charlie (até hoje primeira e única protagonista feminina de le Carré, conhecido aliás por figuras masculinas brilhantes e figuras femininas de papel vegetal), apesar de tudo uma personagem interessante não por si só mas pela maneira como é consumida pelas dicotomias que a envolvem, e pela dificuldade em perceber, afinal, para que lado trabalha, e porquê. Mas quem conhece a obra de le Carré reconhece estes arquétipos: Kurtz é o Líder Operacional, figura paternal e quase teocrática no seu universo escondido; Joseph é o Braço-Direito, o Músculo; Charlie é a Vítima Inocente, a pessoa arrastada para dentro do turbilhão e que se perde nas mentiras e verdades até, a certa altura, perder-se a si mesma. Há disto em quase todos os seus livros, e é sempre bom; aqui é porreirinho, uns pontinhos abaixo de algumas histórias de Smiley ou do grande, grande romance que é “The Perfect Spy". O que é sempre, sempre excelente em le Carré, e aqui se mantém, é a sua tendência para escrever não ao nível do indivíduo mas do grupo, não ao nível da acção mas do cerebral: aquelas descrições maravilhosas dos bastidores das operações, dos homens solitários e mal dormidos que as colocam em prática e de todo o pesadelo logístico e humano por detrás daquilo que, noutros thrillers preguiçosos, surge como óbvio, rápido e superficial. “The Little Drummer Girl” tem, por exemplo, uma sequência de 30 páginas durante as quais Charlie é interrogada pelos israelitas, uma madrugada gigantesca e longa que é excelente aqui e seria excelente na obra de qualquer outro escritor, digamos, “de literatura a sério”. Mas talvez pelo seu tamanho e pelo protagonista às vezes coxo “The Little Drummer Girl” seja um melhor livro para quem já gosta de le Carré do que, propriamente, para quem não aprendeu ainda a gostar. É a trufa, a fava ou o cozido à portuguesa do thriller de espionagem.