katya_m's profile picture

katya_m 's review for:

4.5

<i>A partir da Reforma, as bibliotecas foram vasculhadas à procura de textos controversos. Foram usados vários termos abreviados em catálogos para indicar aqueles que deveriam ser conservados ou potencialmente destruídos. Os livros eram registados como contendo assuntos de «bruxaria», «heresias e «católicos»; o destino de muitos destes textos é desconhecido, sendo as listas o único registo da sua existência. O título deste livro - Femina foi o rótulo rabiscado ao lado de textos que se sabe terem sido escritos por uma mulher, portanto menos dignos de serem preservados. Não podemos deixar de nos perguntar quantos outros foram descartados ou destruídos por serem obra de «femina».</i>

Janina Ramirez, como está tanto na moda, é uma historiadora com presença frequente na televisão britânica. O que se justifica, porque Ramirez é uma contadora de histórias nata. E desprovida do ego que normalmente acompanha o nível de exposição a que se sujeita qualquer comunicador. Por isso, ao contrário, por exemplo, daquilo que Beard muitas vezes faz, imiscuindo-se subrepticiamente na narrativa que conta, Ramirez abstrai-se do próprio discurso deixando brilhar os nomes de outros académicos (enquanto Beard tem muitos pruridos no que diz respeito a creditar diretamente os seus pares). Em <i>Femina</i>, desfilam os nomes de arqueólogos solitários e equipas de estudiosos, diretores de museus, curiosos e colecionadores lado a lado com as figuras de várias mulheres medievais que a história tem vindo a ignorar ou esquecer.

<i>A sobrescrita - a prática através da qual os escritores masculinos tomavam as visões, palavras e ideias das mulheres intelectuais e as reescreviam para uma audiência maioritariamente masculina - foi também comum durante todo o período [medieval]. Isto significou que tanto os relatos orais como os escritos por mulheres foram incluídos nos de autores posteriores e permaneceram não reconhecidos. O apagamento de muitas mulheres letradas dos registos é mais um caso de má referenciação do que de exclusão deliberada.</i>

De reis (não só rainhas), a santas, mercadoras, místicas, escritoras, viajantes, guerreiras e cientistas, este livro está pejado de nomes pouco badalados - com a exceção, talvez, de Hildegarda de Bingen e Margery Kempe que alimentam correntes de estudos muito específicas. Sedimentadas nos achados e investigações arqueológicas mais recentes, as histórias destas mulheres trazem à luz do dia o conhecimento de uma realidade medieval muito diferente daquela que nos legou o Século das Luzes, uma era de tradição oral e de memória em que o lugar das mulheres não se definia de acordo com o binómio feminino/masculino, subserviente/poderoso. Falamos de uma época em que as mulheres detinham negócios (como a fiação ou o fabrico de cerveja), faziam comércio (esse ele errante ou fixo), possuiam terras e podiam governar como pares dos seus maridos ou mesmo em nome individual:

<i>Enquanto o seu pai ainda era vivo, Ethelflæd era praticamente invisível nos registos, uma vez que o seu marido assinava cartas com o apoio do rei. Mas viria a sobressair como governante por direito próprio quando Alfredo morreu, em 899, e quando a saúde do seu marido começou a falhar, alguns anos mais tarde. Em 902, estava a tomar decisões importantes em nome do reino de Mércia. A expulsão dos nórdicos de Dublin tinha deixado um grupo de viquingues deslocados, sem lugar para se estabelecerem. Apelaram a Æthelflæd para que lhes desse a autorização de se estabelecerem num local de cultivo perto de Chester. A sua resposta revela uma cabeça clara para a diplomacia e o planeamento do futuro, mesmo sendo ainda uma jovem mulher, começou a fortificar a cidade de Chester para o caso de estes decidirem atacá-la. Seguiu o exemplo do pai, reforçando as muralhas romanas e criando um burh defensivo. Os Anais Irlandeses dão pormenores sobre a forma como Æthelflæd protegeu a cidade quando, em 907, os viquingues do Wirral se juntaram às tropas dinamarquesas e atacaram Chester. Ela reuniu à sua volta um grande exército das regiões vizinhas». Após uma primeira batalha, Æthelflæd enviou mensageiros às tropas inimigas. Declarou que era «a rainha que detém toda a autoridade sobre os saxões». Através de pedidos de lealdade e da promessa de recompensas, convenceu os viquingues de Wirral, que tratara com tanta generosidade, a trocarem a sua lealdade e a juntarem-se às suas forças, e juntos fizeram recuar os seus atacantes. O povo de Chester utilizou todos os meios possíveis para derrotar os dinamarqueses, incluindo despejar cerveja a ferver sobre os homens que se encontravam em baixo e até atirar «todas as colmeias que havia na cidade para cima dos sitiantes. Æthelflæd era agora mais do que uma simples esposa e senhora: era uma estratega militar, diplomata e defensora de Mércia.</i>

Com um índice tão cativante como enigmático, agrupado em categorias que elencam: motores de mudança e agitadoras, guerreiras e líderes, artistas e mecenas, polímatas e cientistas etc etc, este livro tem tanta presunção como uma lista de compras e acaba por oferecer um manancial de dados históricos extremamente ricos aliados a uma visão interdisciplinar que desencadeiam uma nova leitura de materiais e artefactos que são tudo menos desconhecidos, acabando, isso sim, propositadamente ignorados. 

<i>[Jadwiga]foi a primeira e única mulher «rei» da Polónia. De facto, ela e a sua irmā Maria, que foi declarada Rei da Hungria, são duas das únicas mulheres na Europa a terem ostentado o título de «Rex» em vez de «Regina».(...) Os cronistas documentaram que ela falava até sete línguas, sabia certamente ler e muito provavelmente também sabia escrever. Isto não era de modo algum um dado adquirido para os governantes medievais, e o seu marido Jagiełło não sabia ler nem escrever.</i>

Desenterrando códices, peças utilitárias, vestuário, crónicas, arte, tapeçaria ou paramentos, Ramirez sugere uma outra leitura histórica (propositadamente parcial, no sentido em que destaca a narrativa feminina, mas sempre devidamente fundamentada), coeva não da nossa época, mas daquela para a qual os achados remetem.

<i>Ela foi vítima não de preconceitos medievais, mas de atitudes modernas relativamente à liderança feminina. Vê-la como o fizeram os seus contemporâneos mostra-nos que as mulheres podiam exercer influência e que as suas vozes, agora apagadas dos registos, ainda podem ser ouvidas.</i>

Felizmente, já se vai ouvindo um discurso académico menos tendencioso (pelo menos, é essa a minha experiência), um discurso que já reconhece a complexidade dos cerca de mil anos que compõem a Idade Média. Felizmente, já se vão vendo reconhecidas as estruturas criadas pelas mulheres para assegurar a sua igualdade: a educação (muitas vezes encontrada no seio da igreja), a propriedade (através dos negócios) e a liberdade física (através da recusa de modelos hierarquizantes). Este livro é mais uma evidência disso mesmo.

<i>Não se limita a atravessar a Inglaterra, mas vai à Noruega, à Polónia, ao Médio Oriente, através de França, Espanha, Itália e Flandres. É mais viajada do que muitos de nós hoje em dia, apesar de ser significativamente mais limitada nos meios de transporte de que dispunha, sendo as opções o cavalo, as carroças e a pé. E, apesar de ter viajado muito, Margery [Kempe] regressava sempre a casa, a King's Lynn.</i>

<i>Femina</i> é o resultado das investigações mais recentes e de um olhar muito particular do tempo e espaço ocupado pela sua autora. Não é uma empresa perfeita, ou sequer acabada, mas resulta numa leitura estimulante, cativante e impressionante (jamais "inventiva", como tristemente se publicita na capa!) sobre a multiplicidade e o potencial da história para ensinar o passado e moldar o futuro.