A review by mtsmnds
As Meninas by Lygia Fagundes Telles

5.0

Uma obra complexa e multifacetada, capaz de testemunho de um tempo. Os acontecimentos se dão em alguns dias durante a ditadura militar. Em nenhum momento a opressão se materializa, mas ela paira nas ações das personagens.

Lygia criou personagens vivas, que poderiam estar entre nós. Sua forma de narrar não assume um narrador externo, mas é de dentro de cada personagem, da sua própria cabeça. Acredito que é uma forma de escrever bastante complexa que necessita muito esmero e construção. A autora o faz muito bem. As personagens são jovens -- como diz Cristovão Tezza -- elas sabem pouco, e se perdem no que sabem, assim, estar "dentro" de cada uma é vivenciar cada uma delas a sua maneira.

Nesta forma de crônica em fluxo de consciência muitas camadas de narrativa se combinam, dando uma ideia de todos e partes que vão se montando, e inclusive de contradições ou narrativas enganosas, que os personagens conferem com suas óticas particulares. O livro não trata de uma verdade absoluta nem chega num apice ou conclusão, mas explora muitos aspectos como um retrato abstrato, por uma fresta no tempo, da vida em são paulo para essas garotas dos anos 60/70.

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A complexidade se dá, na minha opinião 1) Pelas personalidades e interações das personagens e 2) Pela forma de narrativa. O fluxo de consciência é uma técnica que aprecio muito, no entanto não é fácil de ler. A pontuação, edição, diagramação também em nenhuma forma ajuda a distinguir nessa obra o que é pensamento e o que é falado em voz alta, exceto em diálogos. O resultado natural disso é um personagem passando da fala para o pensamento mais rápido do que você pode perceber, o que leva a releitura de trechos com certa frequência.

Há trechos muito interessantes onde Ana Clara está completamente louca de drogas e o fluxo de consciência encaixou muito bem para retratar esse estado dela. Foi usada muito bem a técnica e toda a sequência que se dá também passa muita aflição, pois ela está certamente em perigo e perdendo a o pouco que resta de lucidez. O arco de Ana Clara é importante pois a vemos sendo construída como uma mulher a beira da ruína através das drogas, mas a autora apenas a retrata, sem tecer comentários.

Sobre as personalidades, isto para foi o que tornou a obra mais difícil de ler. Ninguem nesta obra é interessante, talvez exceto a Lia. São vivas, bem construídas, quase de carne e osso, mas me pareceram extremamente irritantes. Há mérito autoral nisso mas também me questiono qual o significado de retratar pessoas assim.

Os diálogos em maior parte são todos entrecortados -- os personagens raramente dão sequência a uma conversa, respondendo seu interlocutor -- parece que é uma afetação delas ou da época, uma frivolidade, um jeito de ser irritante. Eu identifiquei que isso acontece principalmente nas conversas de Lorena com Lia e nas conversas de Ana e Max.

Entre Lorena e Lia certamente há uma relação de poder, Lorena é rica e Lia é pobre. Lorena atua quase como uma "mecena" do aparelho -- o ativismo durante a ditadura -- através de Lia. Lia é uma ativista e conta com a ajuda de Lorena. Lorena faz questão de conversar sobre outros assuntos enquanto Lia precisa de respostas, são diálogos muito frustrantes que parecem mostrar essa dinâmica de poder entre as duas. Soma-se a isso a frivolidade de Lorena. Ela vive na sua bolha e apesar de sim ajudar as amigas, só ajuda à sua maneira, e parece muito desconectada da realidade que tem cercado as outras.

Lorena também é bem livre para expressar seu rascismo, que pontua o livro como pequenos choques.

Nas conversas de Ana e Max, primeiramente ambos sempre estão em certo nível de intoxicação, mas isso não é suficiente para fazer seus diálogos serem tão fragmentados. Eles mal conseguem concluir pensamentos, ou histórias que estão contando um para o outro. Os dois são pobres porem bonitos, onde Max já foi rico. Ambos sonham com a volta a riqueza. São frivolos e superfluos e dramáticos. O relacionamento deles me dá nojo. O único alivio a leitura é o fato de Ana tentar punir -- bater em Max -- quando ele ignora suas falas. O alívio vem da percepção que de fato você não está doido, e um personagem percebe que está sendo ignorado pelo outro. Mas daí também vem a constatação que esses momentos foram construídos propositalmente pela autora.

Assim a única conclusão que posso tomar é que Lygia estava ciente e queria retratar essas pessoas com péssimas formas de se comunicar.

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Sobrevivendo as características irritantes das personagens, somos expostos a esse retrato da época. Podemos vislumbrar suas predileções culturais, seus hábitos, os conflitos da juventude durante a ditadura e questões a cerca de liberdade de expressão, emancipação da mulher, realização pessoal, etc.

Cada uma chega a carregar seu próprio léxico, tendo uma voz distinta, e o fato de terem opiniões e estilos de vida drasticamente distintos gera interações interessantes, onde são provocadas a confrontar uns aos outros consuas visões, sem que haja uma conclusão, as diferenças vão continuar existindo e cada uma seguirá o seu caminho, isso não apenas relativo as 3 meninas centrais, mas as outras personagens como as freiras, as mães, os pares românticos e etc. Cada um é tão vivo que suas diferenças estão estampadas em suas interações.

Assim por fim vale também honrar a maestria com a qual Lygia faz seus personagens navegarem discordâncias, uma qualidade certamente perceptível.