You need to sign in or sign up before continuing.
Take a photo of a barcode or cover
A review by katya_m
Memento Mori by Muriel Spark
Se não nos lembrarmos da Morte, a Morte faz-se lembrar.
Memento Mori, de Muriel Spark é um longo desfiar dos receios, anseios e percepções sentidas na terceira idade quando se enfrenta finalmente a realidade que traz consigo o lema estoico de Memento Mori ou lembra-te da morte.
Ter-se mais de setenta anos é como estar em guerra. Todas as pessoas nossas amigas estão à beira de partir ou já partiram, e nós vamos sobrevivendo entre mortos e moribundos, como num campo de batalha.
Partindo de uma série de telefonemas misteriosos em que uma voz anónima anuncia apenas lembra-te de que vais morrer, Spark tece uma longa teia de relações entre inúmeras personagens alimentada por invejas, soberba, maldade ou mesquinhez à qual é dado acesso privilegiado ao leitor. Através de uma narrativa rápida e intermitente que acompanha o fluxo de pensamento ora de uma ora de outra personagem, Memento Mori está repleto de intrigas, suspeitas, tentativas de subornos e heranças manipuladas - o que não seria nada de novo, não se desse o caso de o elenco ser muito pouco jovem (todo ele acima dos 70 anos) e, agora, parecer ser vítima conjunta de um engraçadinho que os ameaça de morte.
Em Memento Mori há de tudo: uma escritora senil (ou não), uma funcionária que chantageia os seus patrões, um estudioso da psicologia da terceira idade, uma filantropa pouco caridosa, uma bigama insuspeita, etcetera, etcetera... Todos, sem exceção, criaturas vividas, aguerridas e recipientes, via telefone, do velho adágio lembra-te de que vais morrer. A forma como se posicionam perante esta evidência é o que alimenta a narrativa - há os que a negam à partida; os que se revoltam; os que a ignoram e, mais raros, aqueles que a aceitam como parte intrínseca da vida:
Charmian deixou-se ficar à escuta um pouco mais, tentando confirmar a impressão de estar só naquela casa. Não ouvia um som. Levantou-se lentamente, arranjou-se sozinha e, apoiando-se, agarrada à balaustrada do patamar e depois ao corrimão, desceu as escadas. Estava no primeiro patamar intermédio quando o telefone tocou. Não se apressou, mas alcançou-o enquanto ainda tocava.
- É Mrs Colston quem fala?
- Sim, sou a própria.
- Charmian Piper, não é verdade?
- Sim. Você é jornalista?
-Lembre-se - disse a voz - que vai morrer. - Oh, quanto a isso - disse ela, - há mais de trinta anos que de vez em quando tenho pensado no assunto. A minha memória trai-me a respeito de algumas coisas. Tenho oitenta e seis anos feitos. Mas, seja como for, não me esqueço da minha morte, venha ela quando vier.
- Fico encantado ao ouvi-la falar assim - disse o homem. - Até outro dia.
Quem é o autor das chamadas e onde elas levarão as personagens fica para descobrir ao longo da leitura, mas o cerne da criação de Muriel Spark parece residir na análise do declínio mental e físico associado à velhice, e nos preconceitos de quem, apesar de, inexoravelmente, se encaminhar para lá, lhe nega o devido direito:
A vida tornava-se tão primitiva, pensou Guy, à medida que a idade avançava: apesar de todas as comodidades habituais, uma pessoa ficava mais vulnerável à acção da natureza do que qualquer jovem explorador polar. E as leis físicas impunham-se tão simplesmente, frustrando todos os propósitos pessoais de cada um.
À semelhança das personagens de Memento Mori, os leitores aceitam, recusam ou rebelam-se perante a ideia de declínio do seu corpo, das suas faculdades, das suas relações... Mas, sobretudo, recordam ou não que esse declínio é apenas uma outra etapa antes de tudo terminar (ou evoluir, como preferirem). E depois, o que fica?
Se pudesse recomeçar agora a minha vida, tentaria habituar-me a todas as noites reflectir um momento sobre a morte. Digamos que adoptaria a prática de me lembrar da morte. Não há outro exercício que possa tornar a vida mais intensa. A morte, quando se aproxima, não deveria apanhar-nos de surpresa. Deveria antes estar presente em todas as nossas expectativas em relação à vida. Sem uma presença continuada do sentimento da morte, a vida é insípida. Como se vivêssemos alimentados a claras de ovo.
Refletir, como os estóicos, sobre a morte, pode competir para apimentar a vida, para a valorizar, para destacar o espírito perante o corpo, para um tomar de consciência mais efetivo acerca do presente, para, quem sabe, um rebate de consciência...
Pelo meu lado - disse Miss Taylor -, gostava muito que me deixassem morrer em paz. Mas os médicos haviam de ficar horrorizados se me ouvissem dizer uma coisa assim. Sentem-se tão orgulhosos dos seus novos medicamentos e métodos de tratamento: descobrem-se a todo o momento novas coisas... Às vezes chego a recear, se as descobertas continuarem a este ritmo, não chegar a poder morrer.
...ou não! Podemos simplesmente continuar a labutar nos nossos desejos e aspirações mais ou menos mundanos já que não sabemos o que se segue a esta vida.
Tudo é possível e Muriel Spark também não nos devolve uma melhor resposta. Certo é que, Memento Mori é um livrinho sinistro, com um humor negro do mais macabro que há, onde os velhos, os desvalidos e os doentes desfilam para nos recordar de aproveitar o dia de hoje, seja a reviver o passado, a planear o futuro ou simplesmente a saborear um bom chá.
Um grito sobe do vazio do ser:
Lembra-te, oh, lembra-te que vais morrer.
(...)
Lento, o suspiro que me vem dizer
num eco: lembra-te que vais morrer.
(...)
De longe vem a Voz que faz tremer:
Ó mortal, lembra-te que vais morrer!
Memento Mori, de Muriel Spark é um longo desfiar dos receios, anseios e percepções sentidas na terceira idade quando se enfrenta finalmente a realidade que traz consigo o lema estoico de Memento Mori ou lembra-te da morte.
Ter-se mais de setenta anos é como estar em guerra. Todas as pessoas nossas amigas estão à beira de partir ou já partiram, e nós vamos sobrevivendo entre mortos e moribundos, como num campo de batalha.
Partindo de uma série de telefonemas misteriosos em que uma voz anónima anuncia apenas lembra-te de que vais morrer, Spark tece uma longa teia de relações entre inúmeras personagens alimentada por invejas, soberba, maldade ou mesquinhez à qual é dado acesso privilegiado ao leitor. Através de uma narrativa rápida e intermitente que acompanha o fluxo de pensamento ora de uma ora de outra personagem, Memento Mori está repleto de intrigas, suspeitas, tentativas de subornos e heranças manipuladas - o que não seria nada de novo, não se desse o caso de o elenco ser muito pouco jovem (todo ele acima dos 70 anos) e, agora, parecer ser vítima conjunta de um engraçadinho que os ameaça de morte.
Em Memento Mori há de tudo: uma escritora senil (ou não), uma funcionária que chantageia os seus patrões, um estudioso da psicologia da terceira idade, uma filantropa pouco caridosa, uma bigama insuspeita, etcetera, etcetera... Todos, sem exceção, criaturas vividas, aguerridas e recipientes, via telefone, do velho adágio lembra-te de que vais morrer. A forma como se posicionam perante esta evidência é o que alimenta a narrativa - há os que a negam à partida; os que se revoltam; os que a ignoram e, mais raros, aqueles que a aceitam como parte intrínseca da vida:
Charmian deixou-se ficar à escuta um pouco mais, tentando confirmar a impressão de estar só naquela casa. Não ouvia um som. Levantou-se lentamente, arranjou-se sozinha e, apoiando-se, agarrada à balaustrada do patamar e depois ao corrimão, desceu as escadas. Estava no primeiro patamar intermédio quando o telefone tocou. Não se apressou, mas alcançou-o enquanto ainda tocava.
- É Mrs Colston quem fala?
- Sim, sou a própria.
- Charmian Piper, não é verdade?
- Sim. Você é jornalista?
-Lembre-se - disse a voz - que vai morrer. - Oh, quanto a isso - disse ela, - há mais de trinta anos que de vez em quando tenho pensado no assunto. A minha memória trai-me a respeito de algumas coisas. Tenho oitenta e seis anos feitos. Mas, seja como for, não me esqueço da minha morte, venha ela quando vier.
- Fico encantado ao ouvi-la falar assim - disse o homem. - Até outro dia.
Quem é o autor das chamadas e onde elas levarão as personagens fica para descobrir ao longo da leitura, mas o cerne da criação de Muriel Spark parece residir na análise do declínio mental e físico associado à velhice, e nos preconceitos de quem, apesar de, inexoravelmente, se encaminhar para lá, lhe nega o devido direito:
A vida tornava-se tão primitiva, pensou Guy, à medida que a idade avançava: apesar de todas as comodidades habituais, uma pessoa ficava mais vulnerável à acção da natureza do que qualquer jovem explorador polar. E as leis físicas impunham-se tão simplesmente, frustrando todos os propósitos pessoais de cada um.
À semelhança das personagens de Memento Mori, os leitores aceitam, recusam ou rebelam-se perante a ideia de declínio do seu corpo, das suas faculdades, das suas relações... Mas, sobretudo, recordam ou não que esse declínio é apenas uma outra etapa antes de tudo terminar (ou evoluir, como preferirem). E depois, o que fica?
Se pudesse recomeçar agora a minha vida, tentaria habituar-me a todas as noites reflectir um momento sobre a morte. Digamos que adoptaria a prática de me lembrar da morte. Não há outro exercício que possa tornar a vida mais intensa. A morte, quando se aproxima, não deveria apanhar-nos de surpresa. Deveria antes estar presente em todas as nossas expectativas em relação à vida. Sem uma presença continuada do sentimento da morte, a vida é insípida. Como se vivêssemos alimentados a claras de ovo.
Refletir, como os estóicos, sobre a morte, pode competir para apimentar a vida, para a valorizar, para destacar o espírito perante o corpo, para um tomar de consciência mais efetivo acerca do presente, para, quem sabe, um rebate de consciência...
Pelo meu lado - disse Miss Taylor -, gostava muito que me deixassem morrer em paz. Mas os médicos haviam de ficar horrorizados se me ouvissem dizer uma coisa assim. Sentem-se tão orgulhosos dos seus novos medicamentos e métodos de tratamento: descobrem-se a todo o momento novas coisas... Às vezes chego a recear, se as descobertas continuarem a este ritmo, não chegar a poder morrer.
...ou não! Podemos simplesmente continuar a labutar nos nossos desejos e aspirações mais ou menos mundanos já que não sabemos o que se segue a esta vida.
Tudo é possível e Muriel Spark também não nos devolve uma melhor resposta. Certo é que, Memento Mori é um livrinho sinistro, com um humor negro do mais macabro que há, onde os velhos, os desvalidos e os doentes desfilam para nos recordar de aproveitar o dia de hoje, seja a reviver o passado, a planear o futuro ou simplesmente a saborear um bom chá.
Um grito sobe do vazio do ser:
Lembra-te, oh, lembra-te que vais morrer.
(...)
Lento, o suspiro que me vem dizer
num eco: lembra-te que vais morrer.
(...)
De longe vem a Voz que faz tremer:
Ó mortal, lembra-te que vais morrer!