A review by katya_m
Franny e Zooey by J.D. Salinger, Ruggero Bianchi, Romano Carlo Cerrone

"(...)todo o verdadeiro estudo religioso devia conduzir ao desconhecimento das diferenças, das ilusórias diferenças, entre rapazes e raparigas, animais e pedras, dia e noite, calor e frio."
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Distancio-me de literatura com motivos/reflexões religiosas (e este Franny e Zooey deu-me tanto déjà vu e reminescências do Siddharta que me espanto a mim mesma por fazer uma leitura integral em meio dia apenas), mas volta e meia também tenho as minhas crises espirituais e tento olhar para ela - a literatura com motivos religiosos - com olhos de ver filosoficamente.

Salinger é um estranho para mim; não li o famosíssimo À Espera No Centeio, menos por falta de interesse do que por não lhe ter conseguido ainda deitar a mão (o mundo editorial português há muito que já só vê cifrões e perdeu a missão de trazer LITERATURA ao público); e resolvi começar por onde conseguia chegar. Um conto e uma novela depois, não sei como nem onde arquivar este livro nas estantes mentais.
Li-o de um fôlego tentando não perder a linha de raciocínio, tentando não esquecer a dicotomia espiritual/racional que sustenta a narrativa, e dou-me por muito feliz em persistir na tarefa de manter uma mentalidade aberta e ouvir dois discursos tão diferentes (ou não) do meu.

"(...)não há diferença nenhuma que eu veja entre o homem ávido de tesouros materiais, ou mesmo intelectuais, e o homem ávido de tesouros espirituais. Como tu mesma disseste, um tesouro é um tesouro, raios me partam, e parece-me que noventa por cento dos santos da história que odiavam o mundo eram, na sua essência, tão ambiciosos e desinteressantes como todos nós."
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Como já disse, pouco ou nada conheço de Salinger. A sua fama de recluso não me fascina por aí além - temos em Portugal um caso muito semelhante, certamente até mais do que um, tanto ou mais talentoso, e nada lembrado -, mas, se há coisa que me ficou deste livro foi a honestidade com que o autor plasma cada ideia no papel (não necessariamente as suas ideias, mas ideias de pleno direito como as de todos nós).

Por isso, ao longo da leitura parei várias vezes para sorrir às palavras encantadoreas que me foram sendo oferecidas:

"(...)há coisas belas neste mundo... Realmente belas. Somos uns tontos quando nos deixamos afastar do que é fundamental. Sempre, sempre, sempre a referir todas as coisas que acontecem com os nossos pequenos e asquerosos egos."
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Outras vezes parei a refletir o conhecimento que tenho de e a postura que assumo face a discursos doutrinais:

"Que se passa contigo, companheira? Onde tens as miolos? Já que tiveste uma educação anormal, pelo menos serve-te dela. Podes rezar a Oração de Jesus daqui até ao dia do juízo final, mas se não perceberes que a única coisa que conta na vida religiosa é o distanciamento, não vejo como possas avançar um passo que seja. Distanciamento, companheira, e só distanciamento."
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Outras ainda senti-me em perfeita comunhão com a noção de que, com religião ou sem ela, com mais ou menos espiritualidade que se a encare, a vida é efémera (não resisto à frase feita) e não mais do que uma passagem shakespeariana por um palco belo e cruel onde somos apenas atores.

"Neste maldito e fenomenal mundo, é uma sorte quando nos dão tempo para espirrar."
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Agora, das duas uma: ou chego ao fim do dia já esquecida do que li, ou vou levar algum tempo a processar este.


(Pequeno aparte: muito fumam as criaturas de Salinger!)