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katya_m 's review for:
Temor e Tremor
by Amélie Nothomb, Carlos Sousa de Almeida
Comecei este livro com as minhas reservas - Amélie Nothomb é reconhecidamente controversa, da sua obra à sua vida há todo um conjunto de mal entendidos que alimentam uma personagem-mito que vende milhares de livros por ano (e, ao seu ritmo de escrita, isso é impressionante). Mas por que razão é problemático discutir a personalidade, nacionalidade, vida etc. de um autor para apreciar o seu livro? Normalmente não é. Ou melhor, não é sequer necessário fazê-lo. Mas, no caso de Nothomb e de <i>Temor e Tremor</i>, é-o um pouco mais. A razão passa pela autoficção de que a autora diz servir-se. Uma vez que para criar uma autobiografia ficcional é preciso partir da realidade para a ficção, e que essa primeira realidade é assumida pela própria Nothomb com contornos ficcionais, a credibilidade dos seus relatos fica difícil de apurar (e aquilo que ancora uma ficção biográfica, não se engane ninguém, é precisamente a credibilidade).
Posta de lado a verosimilhança com a vida da autora/narradora (que remédio), <i>Temor e Tremor </i> é uma obra atípica e feita de contrastes: trágica e cómica, serena e frustrante, complexa e simples, e, talvez, uma lição mais irónica do que crítica do confronto cultural.
Para já, esqueçamos que Nothomb se identifica com a jovem belga que começa a trabalhar como intérprete para a companhia Yumimoto:
<i>O senhor Haneda era o superior do senhor Omochi, que era o superior do senhor Saito, que era o superior da senhora Mori, que era a minha superiora. E eu, eu não era superiora de ninguém. Poderíamos dizer as coisas de outro modo. Eu estava às ordens da senhora Mori, que estava às ordens do senhor Saito, e assim por diante, com tal precisão, que as ordens podiam a jusante, saltar os escalões hierárquicos.
Por conseguinte, na companhia Yumimoto, eu estava às ordens de toda a gente.</i>
As posições estão estabelecidas à partida: a novata responde perante todos. Até aqui, todos nos podemos identificar. Mas a história vai mais longe. A Yumimoto é uma empresa corporativa japonesa - um mundo masculino de alta performance, altamente estilizado e, sob muitos aspectos, vedado às mulheres. A senhora Mori, porém, trabalha na Yumimoto e ascendeu a um cargo importante:
<i>Na companhia, para uma centena de homens, devia haver cinco mulheres, e a Fubuki era a única que tinha acedido ao estatuto de quadro. Restavam, portanto, três empregadas, que trabalhavam noutros andares.</i>
82
A manutenção desse cargo alimenta rancor perante a recém-chegada ocidental que se lança de cabeça numa tentativa de subida na carreira a poucos dias de se iniciar no cargo. A narradora, essa, diz-se mal interpretada:
<i>O meu espírito não era da raça dos conquistadores, mas da espécie das vacas que pastam facturas no prado esperando a passagem do comboio da graça. Como era bom viver sem orgulho nem inteligência. Hibernava.</i>
38
Ela não quer roubar o lugar de ninguém, aliás, ela não o vê dessa forma. E é esse o problema. A hierarquia do trabalho oriental é uma espécie sagrada de destino a que cada um está votado: não admite batotas, não admite pressas, exige sacrifício. E, para uma mulher, o dogma é ainda mais explícito:
<i>Espera trabalhar. Há poucas hipóteses, dado o teu sexo, de subires muito, mas espera servir a tua empresa Trabalhar far-te-á ganhar dinheiro, do qual não colherás qualquer alegria, mas com o qual poderás valer-te eventualmente, por exemplo, em caso de casamento - pois não serás tola ao ponto de supor que te queiram pelo teu valor intrínseco.
Tirando isto, podes esperar viver até à velhice, o que não tem, no entanto, qualquer interesse, e não conhecer a desonra, o que é um fim em si. E fica por aqui a lista das tuas esperanças lícitas.
Aqui começa a teoria interminável dos teus deveres estéreis.</i>
58
Onde devia começar a escalada, inicia-se a descida da narradora (chamemos-lhe Amélie, no bom espírito da bioficção). Amélie chegou, viu, interpretou mal e em vez de vencer, perdeu. Progressivamente destituída de várias funções, as suas tribulações na Yumimoto são humilhantes e inaceitáveis para a maioria dos leitores ocidentais:
<i>Recapitulemos. Em criança, queria tornar-me Deus. Rapidamente compreendi que era pedir de mais e moderei as minhas pretensões: seria Jesus. Tive rapidamente consciência do meu excesso de ambição e aceitei «fazer» de mártir quando fosse grande.
Adulta, resolvi ser menos megalómana e trabalhar como intérprete numa sociedade japonesa. Era demasiado bom para mim e tive de descer um escalão tornando-me contabilista. Mas não havia travão para a minha fulminante queda social. Fui, então, transferida para o lugar mais insignificante. Infelizmente - devia ter suspeitado era ainda demasiado bom para mim. Foi então que me deram a minha última atribuição: limpadora de latrinas.</i>
79
Mas, ao contrário deles, Amélie compreende a estratificação oriental (a única condenação que faz é dirigida ao machismo e à ética de trabalho japonesa - não leio aqui censura da parte da protagonista/autora; leio a minha e de outros leitores, isso sim), defende o sistema (que dá o mote ao livro <i>Temor e tremor</i>), mas aponta o dedo à passividade perante o autoritarismo como cultura, à sua assimilação permanente e ao seu uso como ferramenta de opressão no domínio da vida privada e profissional:
<i>Os contabilistas que passavam dez horas por dia a copiar números eram aos meus olhos vítimas sacrificadas no altar de uma divindade desprovida de grandeza e de mistério. Desde sempre os humildes têm votado a sua vida a realidades que os ultrapassam: ao menos, anteriormente, eles podiam imaginar alguma causa mística neste lamaçal. Actualmente, já não conseguiam iludir-se. Davam a sua vida para nada.</i>
97
<i>Temor e Tremor</i> tem tanto de encantatório como de condenatório, nasce daí a sua controvérsia. Como se pode ler elogio onde há crítica? Para mim, é essencial manter a lucidez para poder elogiar. Nesse aspeto, aceito a ferocidade de algumas afirmações, como interpreto o encómio de outras. A experiência de Amélie, a resvalar progressivamente da comédia para a desgraça tem um quê de surreal, tem muito de frustrante, mas, por qualquer razão, funciona bastante bem numa lógica de ironia perante o inevitável.
<i>...os sistemas mais autoritários suscitam, nas nações em que eles vigoram, os casos mais alucinantes de desvio - e, por esse facto mesmo, uma relativa tolerância relativamente às bizarrias humanas mais assombrosas. Não se sabe o que é um excêntrico sem se ter conhecido um excêntrico nipónico. Eu tinha dormido sob a imundície? Já se tinham visto outros. O Japão é um país que sabe o que significa «ir-se abaixo».</i>
55
Posta de lado a verosimilhança com a vida da autora/narradora (que remédio), <i>Temor e Tremor </i> é uma obra atípica e feita de contrastes: trágica e cómica, serena e frustrante, complexa e simples, e, talvez, uma lição mais irónica do que crítica do confronto cultural.
Para já, esqueçamos que Nothomb se identifica com a jovem belga que começa a trabalhar como intérprete para a companhia Yumimoto:
<i>O senhor Haneda era o superior do senhor Omochi, que era o superior do senhor Saito, que era o superior da senhora Mori, que era a minha superiora. E eu, eu não era superiora de ninguém. Poderíamos dizer as coisas de outro modo. Eu estava às ordens da senhora Mori, que estava às ordens do senhor Saito, e assim por diante, com tal precisão, que as ordens podiam a jusante, saltar os escalões hierárquicos.
Por conseguinte, na companhia Yumimoto, eu estava às ordens de toda a gente.</i>
As posições estão estabelecidas à partida: a novata responde perante todos. Até aqui, todos nos podemos identificar. Mas a história vai mais longe. A Yumimoto é uma empresa corporativa japonesa - um mundo masculino de alta performance, altamente estilizado e, sob muitos aspectos, vedado às mulheres. A senhora Mori, porém, trabalha na Yumimoto e ascendeu a um cargo importante:
<i>Na companhia, para uma centena de homens, devia haver cinco mulheres, e a Fubuki era a única que tinha acedido ao estatuto de quadro. Restavam, portanto, três empregadas, que trabalhavam noutros andares.</i>
82
A manutenção desse cargo alimenta rancor perante a recém-chegada ocidental que se lança de cabeça numa tentativa de subida na carreira a poucos dias de se iniciar no cargo. A narradora, essa, diz-se mal interpretada:
<i>O meu espírito não era da raça dos conquistadores, mas da espécie das vacas que pastam facturas no prado esperando a passagem do comboio da graça. Como era bom viver sem orgulho nem inteligência. Hibernava.</i>
38
Ela não quer roubar o lugar de ninguém, aliás, ela não o vê dessa forma. E é esse o problema. A hierarquia do trabalho oriental é uma espécie sagrada de destino a que cada um está votado: não admite batotas, não admite pressas, exige sacrifício. E, para uma mulher, o dogma é ainda mais explícito:
<i>Espera trabalhar. Há poucas hipóteses, dado o teu sexo, de subires muito, mas espera servir a tua empresa Trabalhar far-te-á ganhar dinheiro, do qual não colherás qualquer alegria, mas com o qual poderás valer-te eventualmente, por exemplo, em caso de casamento - pois não serás tola ao ponto de supor que te queiram pelo teu valor intrínseco.
Tirando isto, podes esperar viver até à velhice, o que não tem, no entanto, qualquer interesse, e não conhecer a desonra, o que é um fim em si. E fica por aqui a lista das tuas esperanças lícitas.
Aqui começa a teoria interminável dos teus deveres estéreis.</i>
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Onde devia começar a escalada, inicia-se a descida da narradora (chamemos-lhe Amélie, no bom espírito da bioficção). Amélie chegou, viu, interpretou mal e em vez de vencer, perdeu. Progressivamente destituída de várias funções, as suas tribulações na Yumimoto são humilhantes e inaceitáveis para a maioria dos leitores ocidentais:
<i>Recapitulemos. Em criança, queria tornar-me Deus. Rapidamente compreendi que era pedir de mais e moderei as minhas pretensões: seria Jesus. Tive rapidamente consciência do meu excesso de ambição e aceitei «fazer» de mártir quando fosse grande.
Adulta, resolvi ser menos megalómana e trabalhar como intérprete numa sociedade japonesa. Era demasiado bom para mim e tive de descer um escalão tornando-me contabilista. Mas não havia travão para a minha fulminante queda social. Fui, então, transferida para o lugar mais insignificante. Infelizmente - devia ter suspeitado era ainda demasiado bom para mim. Foi então que me deram a minha última atribuição: limpadora de latrinas.</i>
79
Mas, ao contrário deles, Amélie compreende a estratificação oriental (a única condenação que faz é dirigida ao machismo e à ética de trabalho japonesa - não leio aqui censura da parte da protagonista/autora; leio a minha e de outros leitores, isso sim), defende o sistema (que dá o mote ao livro <i>Temor e tremor</i>), mas aponta o dedo à passividade perante o autoritarismo como cultura, à sua assimilação permanente e ao seu uso como ferramenta de opressão no domínio da vida privada e profissional:
<i>Os contabilistas que passavam dez horas por dia a copiar números eram aos meus olhos vítimas sacrificadas no altar de uma divindade desprovida de grandeza e de mistério. Desde sempre os humildes têm votado a sua vida a realidades que os ultrapassam: ao menos, anteriormente, eles podiam imaginar alguma causa mística neste lamaçal. Actualmente, já não conseguiam iludir-se. Davam a sua vida para nada.</i>
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<i>Temor e Tremor</i> tem tanto de encantatório como de condenatório, nasce daí a sua controvérsia. Como se pode ler elogio onde há crítica? Para mim, é essencial manter a lucidez para poder elogiar. Nesse aspeto, aceito a ferocidade de algumas afirmações, como interpreto o encómio de outras. A experiência de Amélie, a resvalar progressivamente da comédia para a desgraça tem um quê de surreal, tem muito de frustrante, mas, por qualquer razão, funciona bastante bem numa lógica de ironia perante o inevitável.
<i>...os sistemas mais autoritários suscitam, nas nações em que eles vigoram, os casos mais alucinantes de desvio - e, por esse facto mesmo, uma relativa tolerância relativamente às bizarrias humanas mais assombrosas. Não se sabe o que é um excêntrico sem se ter conhecido um excêntrico nipónico. Eu tinha dormido sob a imundície? Já se tinham visto outros. O Japão é um país que sabe o que significa «ir-se abaixo».</i>
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