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O Náufrago by Thomas Bernhard
3.0

Mal o Glenn havia tocado meia dúzia de compassos já o Wertheimer pensara em desistir, lembro-me perfeitamente, o Wertheimer tinha entrado na sala do primeiro andar do Mozarteum que havia sido reservada para o Horowitz e escutou e viu Glenn, ficou imóvel à porta, sem ser capaz de se sentar, foi preciso que o Horowitz o convidasse a sentar-se, mas não foi capaz de se sentar durante todo o tempo em que o Glenn esteve a tocar, só depois do Glenn ter parado de tocar é que o Wertheimer se sentou, tinha os olhos fechados, estou a ver isso ainda perfeitamente, pensei, ele não disse nem mais uma palavra. Usando uma expressão patética posso dizer que aquilo foi o fim, o fim da carreira de virtuoso do Wertheimer.



Para o Wertheimer era sempre importante saber o que as pessoas pensavam dele, o Glenn não dava a isso o minimo valor, como eu próprio também não, a mim, tal como ao Glenn, fora-me sempre indiferente o que o chamado meio social  poderia pensar a meu respeito. O Wertheimer falava sempre, mesmo quando não tinha nada para dizer, só porque o estar calado se tornara perigoso para ele, o Glenn ficava calado mesmo por longos períodos, e eu, à semelhança do Glenn, podia estar calado durante dias pelo menos, conquanto não fosse capaz de o fazer durante semanas, como o Glenn fazia. Bastava o medo de não ser levado a sério para tornar falador o nosso náufrago, pensava eu. (...) O Wertheimer era portanto uma pessoa que podia perfeimeme estar calado durante muito tempo e mesmo durante mais tempo ainda do que o Glenn e eu, mas que, logo que estava connosco, se sentia obrigado a falar, pensei eu. 



Imaginamos muito frequentemente que estamos sentados a uma mesa juntamente com aquelas pessoas por quem nos sentimos atraidos toda a vida, com essas chamadas pessoas simples, que, como é natural, idealizamos de uma forma muito diferente daquela como elas são na realidade, e depois, se nos sentamos realmente com elas a uma mesa, vemos que elas não são como nós as idealizámos, e que pertencemos a um mundo absolutamente diferente do delas, ao contrário do que nos havíamos convencido, e assim, sentados à mesma mesa e no meio delas, apanhamos exactamente esse mesmo choque que temiamos, pelo facto de nos termos sentado à mesma mesa que elas e termos acreditado que pertencíamos ao mesmo mundo que elas ou que poderíamos estar sentados com elas, por muito pouco tempo que fosse, sem sofrer o correspondente castigo, o que é afinal o maior de todos os erros, pensava eu. Sentimos toda a vida uma ânsia por essas pessoas e queremos estar junto delas, e, logo que lhes revelamos o que sentimos a seu respeito, somos repelidos por elas e da forma mais atroz.