A review by katya_m
Elegia Para um Americano by Siri Hustvedt

A história faz-se de amnésia.(...)O trauma não faz parte de uma história; é outra história. É aquilo que recusamos que faça parte na nossa história.

Quando peguei em Siri Hustvedt, desconhecia que era casada com quem é (até porque não conheço a obra de Auster), pelo que a minha leitura não foi, de modo algum, contaminada por comparações, diminuições, preconceitos ou conhecimento anterior, de qualquer espécie, sobre autora e obra. E ainda bem porque aquilo que encontrei neste Elegia Para Um Americano foi um trabalho literário louvável.

Se me perguntarem, não é pelo enredo ou pelas personagens que este livro agarra o leitor, mas pelo desfiar de memórias, pelo entrecruzar de reflexões e o destrinçar de uma lógica médica e psicanalítica que acompanha a narrativa de forma delicada, conscienciosa e comovente:

A memória presenteia-nos apenas quando o presente a sacode. Não é um armazém com imagens e palavras fixas mas uma rede dinâmica de associações que nunca está parada e é sujeita a revisão sempre que recuperamos uma velha imagem ou palavras antigas.

O processamento a que Siri submete o herói da sua história, fazendo-o atravessar passado, presente e futuro como através de uma lente de autoanalise, é simultâneamente brilhante e enternecedor:

(...)como Kant dizia, nunca temos acesso às coisas em si; o que não quer dizer que não haja um mundo lá fora. O problema é que todos nós somos cegos, dependentes de representações predeterminadas e o que acreditamos que vamos ver. É o que acontece na maior parte do tempo. Não experienciamos o mundo. Experienciamos as nossas expectativas acerca do mundo.

Ao escolher não o alhear de uma sociedade e um tempo comuns e contemporâneos a quem a lê, onde segredos e memórias ecoam preocupações e desejos de todos nós, Hustvedt cria uma galeria de personagens credíveis, perdidas numa urbe selvática que preda as emoções de cada um de nós e nos amputa da capacidade de interagir com os outros e connosco:

Já muitas vezes pensei que ninguém é como se imagina, que todos normalizamos a terrível estranheza da vida íntima com várias ficções convenientes.

Entre os conflitos familiares, o silêncio, a morte e a solidão, as personagens de Siri Hustvedt vão-se movimentando ao sabor das emoções, sensações, traumas e histórias que as fazem quem são...

À medida que foi envelhecendo, sofria com a desintegração da vizinhança que conhecera, e uma vez disse que um dos maiores males no mundo e a que menos atenção se dava era a solidão.

... até descobrirem as portas do diálogo, da compreensão, da partilha, da autoaceitação como uma resposta para a fragmentação pessoal e coletiva do mundo moderno...

Falar une. Nós queremos um mundo coerente, não um mundo todo fragmentado, aos pedaços.

Levando as suas personagens a ponderar as suas preocupações, ansiedades, medos, alegrias e desejos, a autora acaba por oferecer um retrato irónico, mas sentido, dos nossos dias em que a lógica parece ter abandonado a vida em sociedade, mas ainda permanece ao alcance de qualquer um, guardada bem no seu íntimo:

Enquanto o acelerava pela FDR Drive, olhei pela janela para o imenso símbolo da Coca-Cola, suspenso no vazio no outro lado de East River, e achei-o bonito. Nesse momento, o emblema cintilante de uma forma algo passada de capitalismo americano estava inundado de um sentimento de perda, como se reflectisse um desejo colectivo que já se tinha desvanecido. Era tolice sentir alguma emoção em resposta ao anúncio de um refrigerante popular, mas enquanto a imagem se distanciava, pensei para mim: Estão todos a morrer, os nossos pais, as nossas mãe os imigrantes e os exilados, os soldados e os refugiados, os rapazes e as raparigas de "antigamente".


É maravilhosa a forma como Siri Hustvedt escolhe contar esta história: com respeito, finesse, sentido de humor, e um domínio absurdo da narrativa. Foi a forma perfeita de começar, e será a forma perfeitamente de continuar pela sua obra fora.

Antes de me deitar pensei numa história característica da sabedoria popular russa que um professor me contou um dia: se alguma vez te encontrares com o Diabo, a única maneira de te livrares dele é rires na sua cara.