mikesparrow's Reviews (219)


"O senhor Henri encontrou um anel no passeio.
Ah, disse o senhor Henri, o anel talvez seja de ouro.
O senhor Henri pôs logo o anel no bolso e pensou: não é de ouro, é de seis mil copos de absinto.
… é a moeda do meu país.
(…)"


"(…)
… é verdade que se um homem misturar absinto com a realidade fica com uma realidade melhor.
… mas também é certo que se um homem misturar absinto com a realidade fica com um absinto pior.
… muito cedo tomei as opções essenciais que há a tomar na vida - disse o senhor Henri.
… nunca misturei o absinto com a realidade para não piorar a qualidade do absinto.
… mais um copo de absinto, caro comendador. E sem um único pingo de realidade, por favor."


"O senhor Henri disse: os meus pais não me adormeciam com histórias infantis.
… os meus pais adormeciam-me a ler contratos de arrendamento e outros.
… o meu pai trabalhava num notário que tinha um notário e três homens que ninguém notava.
… o meu pai era um deles.
… o meu pai não tinha tempo para estar comigo e não tinha tempo para reler os contratos que era obrigado a redigir.
… o meu pai aproveitava os momentos antes de eu dormir para me ler alto os contratos e assim verificar os erros, e eu cresci a pensar que as histórias tinham sempre dois lados, o lado da direita e o lado da esquerda, dois outorgantes, e que um só dava uma coisa em troca de outra.
… só mais tarde percebi que isto acontecia mesmo na vida real - o dá e recebe - e só nos livros infantis é que se dava algo sem querer receber nada em troca."


"O senhor Henri disse: o telefone foi inventado para as pessoas poderem falar afastadas umas das outras.
… o telefone foi inventado para afastar as pessoas umas das outras.
… é exactamente como o avião.
… o avião foi inventado para as pessoas viverem afastadas umas das outras.
… se não existissem telefones nem aviões as pessoas viviam todas juntas.
… isto é uma teoria, mas pensem bem na teoria.
… o que é preciso é pensar no momento em que ninguém espera.
… é assim que os surpreendemos."


"Costuma dizer-se que o que se escreve sem esforço se lê sem gosto. É-me grato perceber que um escritor se preparou, trabalhou para mim. Gostamos de avaliar a canseira de um escritor mas não gostamos de vê-lo esforçar-se. Preferimos que, como operário competente, remova as pranchas, arrume a ferramenta e varra o passeio.
(…)
A ilusão da espontaneidade é o que fica depois de sofridos (e enterrados) os ossos do ofício."

"Uma tarde, à mesa, estalou a discussão entre meu pai e minha mãe, precisamente num jantar de chegada, a que, como de costume, meus tios assistiam. Eu declarei categoricamente que os detestava a todos, e, atirando com a cadeira por imitação de violência, levantei-me para a varanda, perseguido por um bofetão de meu tio. Lutei contra ele que me agarrava, e contra meu pai que o agarrava a ele, e contra minha mãe que agarrava meu pai, e contra a minha tia que os agarrava a todos; e vendo, num relance enublado, aquele cacho humano a disputar-se a primazia de castigar-me, a voz embargou-se-me em gritos de choro desatado: — Ninguém é meu amigo, ninguém é meu amigo… Só o Papagaio Verde é meu amigo.

A luta suspendeu-se numa gargalhada alvar, que escorria babada pelos guardanapos deles. Eu fiquei de costas, buscando com os olhos, lá em baixo, no quintal, o recanto em que jazia o Papagaio. E ouvi distintamente a sua voz aguda e clara, dominadora e viril, sarcástica e displicente, raivosa e cheia de carácter, a proclamar, num grande voo de asas verdes, o juízo final que murmurara ao morrer. Não eram. Em verdade, não eram sequer isso, cujo sentido eu não sabia então claramente. A vida, desde então, não me esclareceu muito; mas creio firmemente que, se há anjos-da-guarda, o meu tem asas verdes, e sabe, para consolar-me nas horas mais amargas, os mais rudes palavrões dos sete mares."

(http://www.lerjorgedesena.letras.ufrj.br/antologias/ficcao-e-teatro/homenagem-ao-papagaio-verde/)

"Moi j’écoutais et j’entendais qu’on me jugeait intelligent. Mais je ne comprenais pas bien comment les qualités d’un homme ordinaire pouvaient devenir des charges écrasantes contre un coupable. Du moins, c’était cela qui me frappait et je n’ai plus écouté le procureur jusqu’au moment où je l’ai entendu dire : « A-t-il seulement exprimé des regrets ? Jamais, messieurs. Pas une seule fois au cours de l’instruction cet homme n’a paru ému de son abominable forfait. » À ce moment, il s’est tourné vers moi et m’a désigné du doigt en continuant à m’accabler sans qu’en réalité je comprenne bien pourquoi. Sans doute, je ne pouvais pas m’empêcher de reconnaître qu’il avait raison. Je ne regrettais pas beaucoup mon acte. Mais tant d’acharnement m’étonnait. J’aurais voulu essayer de lui expliquer cordialement, presque avec affection, que je n’avais jamais pu regretter vraiment quelque chose. J’étais toujours pris par ce qui allait arriver, par aujourd’hui ou par demain. Mais naturellement, dans l’état où l’on m’avait mis, je ne pouvais parler à personne sur ce ton. Je n’avais pas le droit de me montrer affectueux, d’avoir de la bonne volonté. Et j’ai essayé d’écouter encore parce que le procureur s’est mis à parler de mon âme."