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mikesparrow's Reviews (220)
"Moi j’écoutais et j’entendais qu’on me jugeait intelligent. Mais je ne comprenais pas bien comment les qualités d’un homme ordinaire pouvaient devenir des charges écrasantes contre un coupable. Du moins, c’était cela qui me frappait et je n’ai plus écouté le procureur jusqu’au moment où je l’ai entendu dire : « A-t-il seulement exprimé des regrets ? Jamais, messieurs. Pas une seule fois au cours de l’instruction cet homme n’a paru ému de son abominable forfait. » À ce moment, il s’est tourné vers moi et m’a désigné du doigt en continuant à m’accabler sans qu’en réalité je comprenne bien pourquoi. Sans doute, je ne pouvais pas m’empêcher de reconnaître qu’il avait raison. Je ne regrettais pas beaucoup mon acte. Mais tant d’acharnement m’étonnait. J’aurais voulu essayer de lui expliquer cordialement, presque avec affection, que je n’avais jamais pu regretter vraiment quelque chose. J’étais toujours pris par ce qui allait arriver, par aujourd’hui ou par demain. Mais naturellement, dans l’état où l’on m’avait mis, je ne pouvais parler à personne sur ce ton. Je n’avais pas le droit de me montrer affectueux, d’avoir de la bonne volonté. Et j’ai essayé d’écouter encore parce que le procureur s’est mis à parler de mon âme."
"Estes últimos, estas últimas, deviam inclusivamente morrer, pois desconfio que as suas vidas são supérfluas."
"«(…) presta plástico tributo a esse desdenhado membro do corpo feminino, mostrando uma ninfa entregue à amorosa tarefa de lavar - ou melhor, acariciar - com uma esponja o pé de Diana, enquanto outra ninfa, em doce abandono, acaricia o seu. Tudo é subtil e carnal, de uma delicada sensualidade que dissimula a perfeição das formas e a suavíssima bruma que banha a cena, dotando as figuras dessa qualidade irrealizada e mágica que tens tu, Lucrecia, todas as noites em carne e osso, e também o teu fantasma, quando visitas os meus sonho». Que certo, que actual, que vigente."
"Como aquele que Dom Rigoberto tinha visto no anúncio da Time e que lhe havia recordado os de Lucrécia, e que o tinha aqui, surpreendido pelas primeiras luzes da manhã, a enviar à sua amada esta garrafa que lançaria ao mar, em sua busca, sabendo muito bem que não chegaria, pois como poderia chegar-lhe o que não existia, o que era forjado com o evanescente pincel dos seus sonhos?"
"Escutavam o seu relato? Aparentemente, sim, pois tanto Dom Rigoberto como Dona Lucrecia se achavam imóveis e pareciam ter perdido não só o movimento, como também a respiração. Tinham os olhos cravados no menino e, ao longo da sua história, recitada sem hesitações, com pausas e ênfases de bom contador, ninguém pestanejou. Mas… e a palidez que revelavam? E aqueles olhares concentrados e absortos? Comovia-os assim tanto aquela antiga anedota, daquele longínquo pintor? Eram essas as perguntas que Dom Rigoberto julgava ler nos grandes olhos vivaços de Fonchito que, agora, examinavam um e outro, com calma, como quem esperasse um comentário. Ria-se deles? Ria-se dele? Dom Rigoberto fixou a vista nos olhos claros e translúcidos do filho, procurando o brilho malévolo, aquele piscar ou inflexão de luminosidade que denunciasse o seu maquiavelismo, a sua estratégia, a sua hipocrisia. Não descobriu nada: apenas o olhar são, claro e puro da consciência inocente."
"«(…) presta plástico tributo a esse desdenhado membro do corpo feminino, mostrando uma ninfa entregue à amorosa tarefa de lavar - ou melhor, acariciar - com uma esponja o pé de Diana, enquanto outra ninfa, em doce abandono, acaricia o seu. Tudo é subtil e carnal, de uma delicada sensualidade que dissimula a perfeição das formas e a suavíssima bruma que banha a cena, dotando as figuras dessa qualidade irrealizada e mágica que tens tu, Lucrecia, todas as noites em carne e osso, e também o teu fantasma, quando visitas os meus sonho». Que certo, que actual, que vigente."
"Como aquele que Dom Rigoberto tinha visto no anúncio da Time e que lhe havia recordado os de Lucrécia, e que o tinha aqui, surpreendido pelas primeiras luzes da manhã, a enviar à sua amada esta garrafa que lançaria ao mar, em sua busca, sabendo muito bem que não chegaria, pois como poderia chegar-lhe o que não existia, o que era forjado com o evanescente pincel dos seus sonhos?"
"Escutavam o seu relato? Aparentemente, sim, pois tanto Dom Rigoberto como Dona Lucrecia se achavam imóveis e pareciam ter perdido não só o movimento, como também a respiração. Tinham os olhos cravados no menino e, ao longo da sua história, recitada sem hesitações, com pausas e ênfases de bom contador, ninguém pestanejou. Mas… e a palidez que revelavam? E aqueles olhares concentrados e absortos? Comovia-os assim tanto aquela antiga anedota, daquele longínquo pintor? Eram essas as perguntas que Dom Rigoberto julgava ler nos grandes olhos vivaços de Fonchito que, agora, examinavam um e outro, com calma, como quem esperasse um comentário. Ria-se deles? Ria-se dele? Dom Rigoberto fixou a vista nos olhos claros e translúcidos do filho, procurando o brilho malévolo, aquele piscar ou inflexão de luminosidade que denunciasse o seu maquiavelismo, a sua estratégia, a sua hipocrisia. Não descobriu nada: apenas o olhar são, claro e puro da consciência inocente."
«She ate a little bit, and said anxiously to herself “Which way? Which way?”, holding her hand on the top of her head to feel which way it was growing; and she was quite surprised to find that she remained the same size. To be sure, this is what generally happens when one eats cake; »
«She stretched herself up on tiptoe, and peeped over the edge of the mushroom, and her eyes immediately met those of a large blue caterpillar, that was sitting on the top, with its arms folded,
quietly smoking a long hookah, and taking not the smallest notice of her or of anything else.»
« As she said this, she looked up, and there was the Cat again, sitting on a branch of a tree.
“Did you say ‘pig’, or ‘fig’?” said the Cat.
“I said ‘pig’,” replied Alice; “and I wish you wouldn’t keep appearing and vanishing so suddenly: you make one quite giddy.”
“All right,” said the Cat; and this time it vanished quite slowly, beginning with the end of the tail, and ending with the grin, which remained some time after the rest of it had gone. »
«“You’re a very poor speaker,” said the King.
Here one of the guinea-pigs cheered, and was immediately suppressed by the officers of the court. (As that is rather a hard word, I will just explain to you how it was done. They had a large canvas bag, which tied up at the mouth with strings: into this they slipped the guinea-pig, head first, and then sat upon it.)»
«She stretched herself up on tiptoe, and peeped over the edge of the mushroom, and her eyes immediately met those of a large blue caterpillar, that was sitting on the top, with its arms folded,
quietly smoking a long hookah, and taking not the smallest notice of her or of anything else.»
« As she said this, she looked up, and there was the Cat again, sitting on a branch of a tree.
“Did you say ‘pig’, or ‘fig’?” said the Cat.
“I said ‘pig’,” replied Alice; “and I wish you wouldn’t keep appearing and vanishing so suddenly: you make one quite giddy.”
“All right,” said the Cat; and this time it vanished quite slowly, beginning with the end of the tail, and ending with the grin, which remained some time after the rest of it had gone. »
«“You’re a very poor speaker,” said the King.
Here one of the guinea-pigs cheered, and was immediately suppressed by the officers of the court. (As that is rather a hard word, I will just explain to you how it was done. They had a large canvas bag, which tied up at the mouth with strings: into this they slipped the guinea-pig, head first, and then sat upon it.)»
«She said afterwards that she had never seen in all her life such a face as the King made, when he found himself held in the air by an invisible hand, and being dusted: he was far too much astonished to cry out, but his eyes and his mouth went on getting larger and larger, and rounder and rounder, till her hand shook so with laughing that she nearly let him drop upon the floor.»
«However, this was anything but a regular bee: in fact it was an elephant»
«Alice did not like shaking hands with either of them first, for fear of hurting the other one's feelings; so, as the best way out of the difficulty, she took hold of both hands at once: the next moment they were dancing round in a ring. This seemed quite natural (she remembered afterwards), and she was not even surprised to hear music playing: it seemed to come from the tree under which they were dancing, and it was done (as well as she could make it out) by the branches rubbing one across the other, like fiddles and fiddle-sticks.»
«The sea was wet as wet could be,
The sands were dry as dry.
You could not see a cloud, because
No cloud was in the sky:
No birds were flying over head—
There were no birds to fly.»
«Alice was just beginning to say 'There's a mistake somewhere—,' when the Queen began screaming so loud that she had to leave the sentence unfinished. 'Oh, oh, oh!' shouted the Queen, shaking her hand about as if she wanted to shake it off. 'My finger's bleeding! Oh, oh, oh, oh!'»
«'You don't know what you're talking about!' cried Humpty Dumpty. 'How many days are there in a year?'
'Three hundred and sixty-five,' said Alice.
'And how many birthdays have you?'
'One.'
'And if you take one from three hundred and sixty-five, what
remains?'
'Three hundred and sixty-four, of course.'
Humpty Dumpty looked doubtful. 'I'd rather see that done on paper,' he said.
Alice couldn't help smiling as she took out her memorandum-book, and worked the sum for him:
365
1
___
364 »
«She thought that in all her life she had never seen soldiers so uncertain on their feet: they were always tripping over something or other, and whenever one went down, several more always fell over him, so that the ground was soon covered with little heaps of men.
Then came the horses. Having four feet, these managed rather better than the foot-soldiers: but even THEY stumbled now and then; and it seemed to be a regular rule that, whenever a horse stumbled the rider fell off instantly. The confusion got worse every moment, and Alice was very glad to get out of the wood into an open place, where she found the White King seated on the ground, busily writingin his memorandum-book.»
«'Who did you pass on the road?' the King went on, holding out his hand to the Messenger for some more hay.
'Nobody,' said the Messenger.
'Quite right,' said the King: 'this young lady saw him too. So
of course Nobody walks slower than you.'
'I do my best,' the Messenger said in a sulky tone. 'I'm sure nobody walks much faster than I do!'
'He can't do that,' said the King, 'or else he'd have been here first. However, now you've got your breath, you may tell us what's happened in the town.'»
«'Certainly—certainly!' the King muttered, and beckoned to Haigha. 'Open the bag!' he whispered. 'Quick! Not that one— that's full of hay!'
(…)
The Lion had joined them while this was going on: he looked very tired and sleepy, and his eyes were half shut. 'What's this!' he said, blinking lazily at Alice, and speaking in a deep hollow tone that sounded like the tolling of a great bell.
'Ah, what IS it, now?' the Unicorn cried eagerly. 'You'll never guess! _I_ couldn't.'
The Lion looked at Alice wearily. 'Are you animal—vegetable —or mineral?' he said, yawning at every other word.
'It's a fabulous monster!' the Unicorn cried out, before Alice
could reply.
'Then hand round the plum-cake, Monster,' the Lion said, lying down and putting his chin on this paws. 'And sit down, both of you,' (to the King and the Unicorn): 'fair play with the cake, you
know!'
The King was evidently very uncomfortable at having to sit down between the two great creatures; but there was no other place for him.»
«'I had to kick him, of course,' the Knight said, very seriously. 'And then he took the helmet off again—but it took hours and hours to get me out. I was as fast as—as lightning, you know.'
'But that's a different kind of fastness,' Alice objected.
The Knight shook his head. 'It was all kinds of fastness with me, I can assure you!' he said. He raised his hands in some excitement as he said this, and instantly rolled out of the saddle, and fell headlong into a deep ditch.
Alice ran to the side of the ditch to look for him. She was rather startled by the fall, as for some time he had kept on very well, and she was afraid that he really WAS hurt this time. However, though she could see nothing but the soles of his feet, she was much relieved to hear that he was talking on in his usual tone. 'All kinds of fastness,' he repeated: 'but it was careless of him to put another man's helmet on—with the man in it, too.'
'How CAN you go on talking so quietly, head downwards?' Alice asked, as she dragged him out by the feet, and laid him in a heap on the bank.
The Knight looked surprised at the question. 'What does it matter where my body happens to be?' he said. 'My mind goes on working all the same. In fact, the more head downwards I am, the more I keep inventing new things.'
'Now the cleverest thing of the sort that I ever did,' he went on after a pause, 'was inventing a new pudding during the meat- course.'»
«However, this was anything but a regular bee: in fact it was an elephant»
«Alice did not like shaking hands with either of them first, for fear of hurting the other one's feelings; so, as the best way out of the difficulty, she took hold of both hands at once: the next moment they were dancing round in a ring. This seemed quite natural (she remembered afterwards), and she was not even surprised to hear music playing: it seemed to come from the tree under which they were dancing, and it was done (as well as she could make it out) by the branches rubbing one across the other, like fiddles and fiddle-sticks.»
«The sea was wet as wet could be,
The sands were dry as dry.
You could not see a cloud, because
No cloud was in the sky:
No birds were flying over head—
There were no birds to fly.»
«Alice was just beginning to say 'There's a mistake somewhere—,' when the Queen began screaming so loud that she had to leave the sentence unfinished. 'Oh, oh, oh!' shouted the Queen, shaking her hand about as if she wanted to shake it off. 'My finger's bleeding! Oh, oh, oh, oh!'»
«'You don't know what you're talking about!' cried Humpty Dumpty. 'How many days are there in a year?'
'Three hundred and sixty-five,' said Alice.
'And how many birthdays have you?'
'One.'
'And if you take one from three hundred and sixty-five, what
remains?'
'Three hundred and sixty-four, of course.'
Humpty Dumpty looked doubtful. 'I'd rather see that done on paper,' he said.
Alice couldn't help smiling as she took out her memorandum-book, and worked the sum for him:
365
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364 »
«She thought that in all her life she had never seen soldiers so uncertain on their feet: they were always tripping over something or other, and whenever one went down, several more always fell over him, so that the ground was soon covered with little heaps of men.
Then came the horses. Having four feet, these managed rather better than the foot-soldiers: but even THEY stumbled now and then; and it seemed to be a regular rule that, whenever a horse stumbled the rider fell off instantly. The confusion got worse every moment, and Alice was very glad to get out of the wood into an open place, where she found the White King seated on the ground, busily writingin his memorandum-book.»
«'Who did you pass on the road?' the King went on, holding out his hand to the Messenger for some more hay.
'Nobody,' said the Messenger.
'Quite right,' said the King: 'this young lady saw him too. So
of course Nobody walks slower than you.'
'I do my best,' the Messenger said in a sulky tone. 'I'm sure nobody walks much faster than I do!'
'He can't do that,' said the King, 'or else he'd have been here first. However, now you've got your breath, you may tell us what's happened in the town.'»
«'Certainly—certainly!' the King muttered, and beckoned to Haigha. 'Open the bag!' he whispered. 'Quick! Not that one— that's full of hay!'
(…)
The Lion had joined them while this was going on: he looked very tired and sleepy, and his eyes were half shut. 'What's this!' he said, blinking lazily at Alice, and speaking in a deep hollow tone that sounded like the tolling of a great bell.
'Ah, what IS it, now?' the Unicorn cried eagerly. 'You'll never guess! _I_ couldn't.'
The Lion looked at Alice wearily. 'Are you animal—vegetable —or mineral?' he said, yawning at every other word.
'It's a fabulous monster!' the Unicorn cried out, before Alice
could reply.
'Then hand round the plum-cake, Monster,' the Lion said, lying down and putting his chin on this paws. 'And sit down, both of you,' (to the King and the Unicorn): 'fair play with the cake, you
know!'
The King was evidently very uncomfortable at having to sit down between the two great creatures; but there was no other place for him.»
«'I had to kick him, of course,' the Knight said, very seriously. 'And then he took the helmet off again—but it took hours and hours to get me out. I was as fast as—as lightning, you know.'
'But that's a different kind of fastness,' Alice objected.
The Knight shook his head. 'It was all kinds of fastness with me, I can assure you!' he said. He raised his hands in some excitement as he said this, and instantly rolled out of the saddle, and fell headlong into a deep ditch.
Alice ran to the side of the ditch to look for him. She was rather startled by the fall, as for some time he had kept on very well, and she was afraid that he really WAS hurt this time. However, though she could see nothing but the soles of his feet, she was much relieved to hear that he was talking on in his usual tone. 'All kinds of fastness,' he repeated: 'but it was careless of him to put another man's helmet on—with the man in it, too.'
'How CAN you go on talking so quietly, head downwards?' Alice asked, as she dragged him out by the feet, and laid him in a heap on the bank.
The Knight looked surprised at the question. 'What does it matter where my body happens to be?' he said. 'My mind goes on working all the same. In fact, the more head downwards I am, the more I keep inventing new things.'
'Now the cleverest thing of the sort that I ever did,' he went on after a pause, 'was inventing a new pudding during the meat- course.'»
"Estes dois homens que batiam nas costas um do outro tinham sido amigos e integrado o mesmo grupo de adeptos do futebol, da política e dos churrascos dos fins-de-semana. Fizeram planos para prolongar a amizade e conservá-la imune à passagem dos anos, e foram companheiros cúmplices no esforço de fazer do país um lugar, se não melhor, pelo menos não tão chato, até ter chegado aquela manhã chuvosa de Setembro e a partir do meio-dia os relógios começarem a marcar horas desconhecidas, horas de desconfiança, horas em que as amizades se desvaneciam, desapareciam, e delas não restava senão o pranto aterrorizado das viúvas ou das mães. A vida encheu-se de buracos negros que surgiam em qualquer parte: alguém entrava numa estação de metro e nunca mais saía, alguém entrava num táxi e não chegava a casa, alguém dizia luz e era engolido pelas sombras.
Muitos homens e mulheres que se conheciam negaram-se a si próprios numa epidemia de amnésia necessária e salvadora. Não, não conheço esses tipos que levam deitados num camião. Não, nunca vi essa mulher que espera na esquina.
O esquecimento foi uma necessidade urgente, é preciso mudar de passeio e evitar encontros, é preciso dar a volta rapidamente e retroceder. E tudo o que esteve grávido de futuro ficou, de repente, envenenado de passado."
"Conversavam, recuperavam o velho hábito de conversar à volta de um copo, olhavam uns para os outros sem qualquer receio, pois mais gordos ou mais magros, calvos ou com a barba grisalha, tinham a certeza de que ainda há certos tigres que não se importam de ter uma risca a mais ou a menos."
Muitos homens e mulheres que se conheciam negaram-se a si próprios numa epidemia de amnésia necessária e salvadora. Não, não conheço esses tipos que levam deitados num camião. Não, nunca vi essa mulher que espera na esquina.
O esquecimento foi uma necessidade urgente, é preciso mudar de passeio e evitar encontros, é preciso dar a volta rapidamente e retroceder. E tudo o que esteve grávido de futuro ficou, de repente, envenenado de passado."
"Conversavam, recuperavam o velho hábito de conversar à volta de um copo, olhavam uns para os outros sem qualquer receio, pois mais gordos ou mais magros, calvos ou com a barba grisalha, tinham a certeza de que ainda há certos tigres que não se importam de ter uma risca a mais ou a menos."
"(…) seis da tarde, mais coisa menos coisa, o doutor Augusto Mendes e o Bocalinda, num ermo sem dono, num lugar que jamais lembraria ao Diabo, muito menos ao menino Jesus, encontravam, tombado no chão, coberto por uma nuvem de moscas, a cara crivada de chumbos, o corpo do Celestino. E só não houve dúvidas de que era quem procuravam por causa do olho de vidro que permanecia intacto sobre a carne desfeita."
"«Graças a Deus», pensou ainda o doutor Augusto Mendes, dirigindo-se ao recém-empossado Presidente da Junta de Salvação Nacional, «tiveste o bom senso de não aparecer com o teu ridículo monóculo. Ou as letrinhas do comunicado são assim tão miudinhas? Não me digas que te viste obrigado, à última da hora, a usar os óculo de ver ao perto? Não acredito. Ai, deves ter ficado tão fodido quando percebeste que não podias aparecer neste momento histórico com o teu ridículo monóculo. Quem é que escreveu esta merda? Só vejo mosquitos, porra. Tragam-me os óculos.»
O doutor Augusto Mendes soltou uma valente gargalhada. Uma gargalhada que ecoou pela sala e lhe devolveu, mais uma vez, a imagem de Celestino. Não a do Celestino morto, no chão, com a cara crivada de chumbos. Mas a do Celestino a olhar-se ao espelho, a contemplar-se, pela primeira vez, com o olho postiço. Um olho postiço que lhe assentava que era uma maravilha.
«Oh, doutor, até parece que já vejo melhor.»
«É capaz, Celestino, é capaz.»"
"Duarte percebeu que era difícil misturar a manteiga e o açúcar, e pensou que talvez não fosse assim tão forte como a mãe dizia."
"E, a cada pergunta, os dois irmãos enchiam a boca com mais comida, tornando as respostas cada vez mais imperceptíveis. Quando os pratos ficaram vazios, o pai pegou no tacho e serviu-os de mais carne e batatas, comentando que gostava de os ver assim, com tanto apetite. Que nada deixava um pai mais satisfeito do que ver os filhos a comerem assim.
Os dois irmão, ao ouvirem aquilo, e apesar de já se sentirem cheios, repetiram a dose, na esperança de caírem nas boas graças do pai. Uma vez, duas vezes, três vezes, até o tacho ficar vazio. Por fim, o pai perguntou-lhes se sabiam o que é que tinha acontecido à pequena Isaura.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se não tinham estado com ela na terça-feira anterior, depois de saírem das aulas.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se alguma vez tinham feito mal à Isaura.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se alguma vez a tinham obrigado a despir-se à frente deles.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se alguma vez lhe tinham tocado no meio das pernas.
Abanaram a cabeça e disseram que não, e a cada resposta que davam, o rosto do pai ia-se enchendo de lágrimas. Lágrimas que depois caíam sobre a toalha branca. Sobre os talheres. Sobre o prato ainda virado ao contrário.
Até que não perguntou mais nada. Pegou uma última vez no tacho, inclinou-o ligeiramente e, com uma colher de pau, tirou de lá de dentro dois olhos. Pousou um em cada prato, e não puderam levantar-se da mesa enquanto não os comeram. Eram os olhos do gato Ezequiel."
"A rapariga explicou-se: disse que não o reconhecia de alguma vez o ter visto, mas de um desenhi que o irmão fizera e que estava pendurado por cima da cabeceira da sua mesa. O desenho era de um rapaz a tocar piano.
A rapariga perguntou-lhe se Duarte tocava piano.
Duarte respondeu que sim.
«Está muito parecido contigo», terminou ela, e desapareceu, atirando a beata para o chão, na companhia de um homem corpulento, certamente um funcionário da agência funerária que a viera avisar de que estava na hora.
Duarte ainda reparou que a beata ficara marcada com o batom vermelho da rapariga."
"Restos de fogueiras. Santo António, pensou. Não, S.Pedro, aqui já deve ser S.Pedro, o das chaves. Tu entras, tu vais-te embora. Tu aí, nome completo. Artur Monteiro. Só Artur Monteiro? Só Artur Monteiro. Deixa ver. Abel, Alcino, Amílcar, Andrade, Antero, António, Antunes, Artur, Artur, Artur, Artur, Artur Monteiro. Cá está. Artur Monteiro. Não vai dar. Não há vagas. Lotação esgotada. Tenta aquela porta ali em baixo. Parece que não são tão exigentes quanto à clientela, e as vistas também são boas. É o que consta."
"«Graças a Deus», pensou ainda o doutor Augusto Mendes, dirigindo-se ao recém-empossado Presidente da Junta de Salvação Nacional, «tiveste o bom senso de não aparecer com o teu ridículo monóculo. Ou as letrinhas do comunicado são assim tão miudinhas? Não me digas que te viste obrigado, à última da hora, a usar os óculo de ver ao perto? Não acredito. Ai, deves ter ficado tão fodido quando percebeste que não podias aparecer neste momento histórico com o teu ridículo monóculo. Quem é que escreveu esta merda? Só vejo mosquitos, porra. Tragam-me os óculos.»
O doutor Augusto Mendes soltou uma valente gargalhada. Uma gargalhada que ecoou pela sala e lhe devolveu, mais uma vez, a imagem de Celestino. Não a do Celestino morto, no chão, com a cara crivada de chumbos. Mas a do Celestino a olhar-se ao espelho, a contemplar-se, pela primeira vez, com o olho postiço. Um olho postiço que lhe assentava que era uma maravilha.
«Oh, doutor, até parece que já vejo melhor.»
«É capaz, Celestino, é capaz.»"
"Duarte percebeu que era difícil misturar a manteiga e o açúcar, e pensou que talvez não fosse assim tão forte como a mãe dizia."
"E, a cada pergunta, os dois irmãos enchiam a boca com mais comida, tornando as respostas cada vez mais imperceptíveis. Quando os pratos ficaram vazios, o pai pegou no tacho e serviu-os de mais carne e batatas, comentando que gostava de os ver assim, com tanto apetite. Que nada deixava um pai mais satisfeito do que ver os filhos a comerem assim.
Os dois irmão, ao ouvirem aquilo, e apesar de já se sentirem cheios, repetiram a dose, na esperança de caírem nas boas graças do pai. Uma vez, duas vezes, três vezes, até o tacho ficar vazio. Por fim, o pai perguntou-lhes se sabiam o que é que tinha acontecido à pequena Isaura.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se não tinham estado com ela na terça-feira anterior, depois de saírem das aulas.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se alguma vez tinham feito mal à Isaura.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se alguma vez a tinham obrigado a despir-se à frente deles.
Abanaram a cabeça e disseram que não.
Perguntou-lhes se alguma vez lhe tinham tocado no meio das pernas.
Abanaram a cabeça e disseram que não, e a cada resposta que davam, o rosto do pai ia-se enchendo de lágrimas. Lágrimas que depois caíam sobre a toalha branca. Sobre os talheres. Sobre o prato ainda virado ao contrário.
Até que não perguntou mais nada. Pegou uma última vez no tacho, inclinou-o ligeiramente e, com uma colher de pau, tirou de lá de dentro dois olhos. Pousou um em cada prato, e não puderam levantar-se da mesa enquanto não os comeram. Eram os olhos do gato Ezequiel."
"A rapariga explicou-se: disse que não o reconhecia de alguma vez o ter visto, mas de um desenhi que o irmão fizera e que estava pendurado por cima da cabeceira da sua mesa. O desenho era de um rapaz a tocar piano.
A rapariga perguntou-lhe se Duarte tocava piano.
Duarte respondeu que sim.
«Está muito parecido contigo», terminou ela, e desapareceu, atirando a beata para o chão, na companhia de um homem corpulento, certamente um funcionário da agência funerária que a viera avisar de que estava na hora.
Duarte ainda reparou que a beata ficara marcada com o batom vermelho da rapariga."
"Restos de fogueiras. Santo António, pensou. Não, S.Pedro, aqui já deve ser S.Pedro, o das chaves. Tu entras, tu vais-te embora. Tu aí, nome completo. Artur Monteiro. Só Artur Monteiro? Só Artur Monteiro. Deixa ver. Abel, Alcino, Amílcar, Andrade, Antero, António, Antunes, Artur, Artur, Artur, Artur, Artur Monteiro. Cá está. Artur Monteiro. Não vai dar. Não há vagas. Lotação esgotada. Tenta aquela porta ali em baixo. Parece que não são tão exigentes quanto à clientela, e as vistas também são boas. É o que consta."
"Saboreei longamente a minha vida perdida; disse a mim próprio, com alegria, que a minha juventude estava acabada, pois alegria é sentir o frio chegar-nos ao coração e poder dizer, tacteando-o com a mão como a uma fogueira que ainda fumega: já não arde."
"(…) a palavra que é vida era minha conhecida, era entrar nela e logo tomar um pouco do seu sabor, o meu desejo não foi mais longe e eu fiquei satisfeito com saber o que sabia. Quanto a uma amante, era para mim um ser satânico, só a magia do nome bastava para me lançar em prolongados êxtases: era pelas suas amantes que os reis arrasavam e conquistavam províncias; por elas se teciam tapetes na Índia, se trabalhava o ouro, se cinzelava o mármore, se fazia girar o mundo; (…)
Este mistério da mulher fora do casamento, mais mulher precisamente por isso, irritava-me e tentava-me com o duplo chamariz do amor e da riqueza."
"A este deus magnífico imolei todas as horas da minha juventude; tinha feito de mim um templo para conter algo de divino, o templo ficou vazio, cresceram urtigas entre as pedras, os pilares desabaram, e eis que os mochos ali fazem os seus ninhos. Sem abusar da existência, a existência abusava de mim, os meus sonhos cansavam-me mais que grandes esforços; uma criação inteira, imóvel, ignorada de si própria, viva surdamente sob a minha vida; eu era um caos adormecido de mil princípios fecundos que não sabiam como manifestar-se nem que fazer consigo, procuravam a sua forma e aguardavam o seu molde."
"E subia ao alto das torres, debruçava-me sobre os abismos, esperava que viesse a vertigem, tinha um desejo inconcebível de me lançar, de voar pelos ares, de me dissipar com os ventos; fitava a ponta dos punhais, as goelas das pistolas, apoiava-as na minha fronte, habituei-me ao contacto do seu frio e da sua ponta; outras vezes contemplava os carroceiros dobrando a esquina das ruas e a enorme largura das ruas triturando o pó da calçada; pensava que também a minha cabeça seria assim esmagada enquanto os cavalos iam a passo. Mas não queria ser enterrado, apavorava-me o ataúde; preferia ser posto num leito de folhas secas, do outro lado da floresta, e que o meu corpo fosse desaparecendo pouco a pouco no bico dos pássaros e nas chuvas da tempestade.
Um dia, em Paris, fiquei muito tempo na Pont-Neuf; era Inverno, o Sena ia cheio, grandes pedaços de redondos de gelo desciam lentamente a corrente e batiam nos arcos, o rio estava esverdeado; pensei em todos aqueles que tinham ido até ali para acabar. Quantas pessoas tinham passado pelo lugar onde me encontrava, correndo de cabeça erguida para os seus amores ou para os seus negócios, e ali tinham voltado, um dia, com passo miúdo, palpitantes perante a aproximação da morte! Chegaram junto do parapeito, subiram para ele, saltaram. Oh!, quanta miséria acabou por ali, quanta felicidade ali se iniciou! Que túmulo frio e húmido! Como se abre para todos nós! Como tem espaço! Estão lá todos, no fundo, rolando lentamente com os seus rostos crispados e os seus membros azuis, cada uma destas correntes geladas leva-os no seu sono e arrasta-os suavemente até ao mar."
"olhando as nuvens que rolavam pelo céu, a relva da margem aveludada e amarelecida pelos raios do sol, escutando o barulho da água e o tremular das copas das árvores que se mexiam ainda que não houvesse vento, sozinho, agitado e calmo ao mesmo tempo, senti-me desfalecer de volúpia ao peso desta natureza sedutora e convoquei o amor! Os meus lábios tremiam, avançavam, como se eu tivesse sentido o sopro de uma outra boca, as minhas mão procuravam qualquer coisa para palpar, o meu olhar tentava descobrir, no contorno das nuvens volumosas, uma forma, um prazer, uma revelação; saía desejo de todos os meus poros, o meu coração enternecia-se e enchia-se de uma harmonia contida, mexia no cabelo da minha própria cabeça, acariciava o meu rosto, tinha prazer em respirar o seu odor, estendia-me no musgo, ao pé das árvores, desejava langores maiores; quisera ser sufocado por rosas, quisera ser desfeito a beijos, ser a flor que o vento sacode, a margem que o rio humedece, a terra que o Sol fecunda."
"as duquesas debruçadas às janelas das portinholas brasonadas, pareciam sorrir-me, convidavam-me a amores sobre seda; do alto das suas varandas, damas de xaile adiantavam-se para me ver e olhavam-me dizendo: ama-nos! Ama-nos! Todas me amavam na sua atitude, nos seus olhos, até na sua imobilidade, via-o bem. E depois a mulher estava por toda a parte, eu roçava nela, aflorava-a, respirava-a, o ar estava cheio do seu odor; via-lhes o pescoço suado entre o xaile e as plumas do chapéu ondulando com o seu andar; o tacão levantava o vestido quando ela caminhava à minha frente."
"Quando considerei a minha vida passada e a minha vida presente, isto é, esperar a o correr dos dias e a lassidão que me acabrunhava, fiquei sem saber em que canto da minha existência tinha o meu coração, se sonhava ou agia, se estava cheio de repugnância ou cheio de desejo, pois tinha oa mesmo tempo as náuseas da saciedade e o ardor das esperanças.
Não passava então disto, amar! Era então somente isto, uma mulher! Ó, meu Deus, porque temos ainda fome quando já estamos fartos? Porquê tantas aspirações e tantas decepções? Porque é tão grande o coração do homem e tão pequena a vida? Há dias em que não lhe bastaria sequer o amor dos anjos e em que numa hora se cansaria de todas as carícias do mundo.
Mas, desvanecida a ilusão, fica em nós o seu odor de fada e procuramos os seus vestígios nos caminhos por onde ela fugiu; confortamo-nos dizendo que nem tudo acabou logo, que a vida está apenas a começar, que todo um mundo se abre diante de nós. Realmente, teremos dispendido tantos sonhos sublimes, tantos desejos fervorosos para chegar a isto?"
"Bem depressa, com um salto de alegria, veio até mim e tomou-me nos seus braços. Tivemos ali um desses abraços frementes, como devem ter os amantes à noite, nos seus encontros, quando, depois de terem estado muito tempo de olhar pousado nas trevas à espreita de um marulhar das folhas, de cada forma vaga que passe na clareira, se encontram e trocam um beijo."
"Foi quando se deitou junto de mim que me apresentou, com um orgulho de cortesã, todos os esplendores da sua carne. Vi a nu o seu colo firme e sempre dilatado por um murmúrio tempestuoso, o seu ventre de nácar com um umbigo cavado, um ventre clássico e convulsivo, macio para nele mergulhar a cabeça como num travesseiro de cetim quente; tinha umas ancas soberbas, verdadeiras ancas de mulher, cujas coxas, perdendo-se numa coxa redonda, recordavam sempre, de perfil, não sei que forma de serpente e de demónio; o suor que molhava a sua pele tornava-a fresca e aderente, na noite os seus olhos brilhavam de uma maneira terrível e a pulseira de âmbar que trazia no braço direito tilintava quando ela se apoiava no lambrim da alcova."
"Eram as primeiras palavras de amor que ouvia na vida. Venham donde vierem, o nosso coração recebe-as com um sobressalto feliz."
"Oh! Se pudéssemos extrair de nós tudo o quecá temos e fazer um ser só de pensamento! (...) Foi para para me recordar dela que escrevi tudo isto, na esperança de que as palavras ma trouxessem de novo viva; não consegui, sei muito mais do que o que disse.
(...) Amar uma mulher dessas?, ter-me-iam dito e, desde logo, ninguém compreenderia; sendo assim, para quê abrir a boca?
Teriam tido razão, ela não era talvez nem mais bela nem mais ardente que qualquer outra, receio amar apenas uma concepção do meu espírito e não acarinhar nela mais que o amor que me fez sonhar."
"E separou-se de tudo isso com pena; são talvez os lugares que mais maldissemos que preferimos aos outros: não têm os presos saudades da sua prisão? É que, nessa prisão, tinham esperança e depois de saírem já não a têm;"
"Outras vezes voltavam-lhe as forças e ele endireitava-se de repente, como uma mola. Então o trabalho surgia-lhe cheio de encanto e a irradiação do pensamento fazia-o sorrir com esse sorriso plácido e profundo dos sábios; logo deitava mãos à obra, tinha planos soberbos, queria dar a conhecer certas épocas a uma luz inteiramente nova, ligar a arte à história, comentar os grandes poetas e os grandes pintores, para tal aprender línguas, remontar à antiguidade, entrar no Oriente; via-se já a decifrar obeliscos; depois achava-se louco e voltava a cruzar os braços.
(...)
Desgastado pelo tédio, hábito terrível, e encontrando mesmo um certo prazer no embrutecimento que é a sua sequela, era como as pessoas que se vêem morrer, já não abria a janela para respirar ar, já não lavava as mãos, vivia mesmo numa imundície de pobre, a mesma camisa servia-lhe uma semana, deixou de fazer a barba e pentear o cabelo. (...)
Fácil é perceber que não tinha objectivo e esse é que é o mal. Quem poderia animá-lo, comovê-lo? O amor? Afastava-se dele; a ambição dava-lhe vontade de rir, quanto ao dinheiro, a sua cupidez era muito grande, mas a sua preguiça levava a melhor e depois, um milhão era coisa que não lhe parecia valer o trabalho de a conquistar;"
"Recomendou que o abrissem, com medo de ser enterrado vivo, mas proibiu terminantemente que o embalsamassem."
"(…) a palavra que é vida era minha conhecida, era entrar nela e logo tomar um pouco do seu sabor, o meu desejo não foi mais longe e eu fiquei satisfeito com saber o que sabia. Quanto a uma amante, era para mim um ser satânico, só a magia do nome bastava para me lançar em prolongados êxtases: era pelas suas amantes que os reis arrasavam e conquistavam províncias; por elas se teciam tapetes na Índia, se trabalhava o ouro, se cinzelava o mármore, se fazia girar o mundo; (…)
Este mistério da mulher fora do casamento, mais mulher precisamente por isso, irritava-me e tentava-me com o duplo chamariz do amor e da riqueza."
"A este deus magnífico imolei todas as horas da minha juventude; tinha feito de mim um templo para conter algo de divino, o templo ficou vazio, cresceram urtigas entre as pedras, os pilares desabaram, e eis que os mochos ali fazem os seus ninhos. Sem abusar da existência, a existência abusava de mim, os meus sonhos cansavam-me mais que grandes esforços; uma criação inteira, imóvel, ignorada de si própria, viva surdamente sob a minha vida; eu era um caos adormecido de mil princípios fecundos que não sabiam como manifestar-se nem que fazer consigo, procuravam a sua forma e aguardavam o seu molde."
"E subia ao alto das torres, debruçava-me sobre os abismos, esperava que viesse a vertigem, tinha um desejo inconcebível de me lançar, de voar pelos ares, de me dissipar com os ventos; fitava a ponta dos punhais, as goelas das pistolas, apoiava-as na minha fronte, habituei-me ao contacto do seu frio e da sua ponta; outras vezes contemplava os carroceiros dobrando a esquina das ruas e a enorme largura das ruas triturando o pó da calçada; pensava que também a minha cabeça seria assim esmagada enquanto os cavalos iam a passo. Mas não queria ser enterrado, apavorava-me o ataúde; preferia ser posto num leito de folhas secas, do outro lado da floresta, e que o meu corpo fosse desaparecendo pouco a pouco no bico dos pássaros e nas chuvas da tempestade.
Um dia, em Paris, fiquei muito tempo na Pont-Neuf; era Inverno, o Sena ia cheio, grandes pedaços de redondos de gelo desciam lentamente a corrente e batiam nos arcos, o rio estava esverdeado; pensei em todos aqueles que tinham ido até ali para acabar. Quantas pessoas tinham passado pelo lugar onde me encontrava, correndo de cabeça erguida para os seus amores ou para os seus negócios, e ali tinham voltado, um dia, com passo miúdo, palpitantes perante a aproximação da morte! Chegaram junto do parapeito, subiram para ele, saltaram. Oh!, quanta miséria acabou por ali, quanta felicidade ali se iniciou! Que túmulo frio e húmido! Como se abre para todos nós! Como tem espaço! Estão lá todos, no fundo, rolando lentamente com os seus rostos crispados e os seus membros azuis, cada uma destas correntes geladas leva-os no seu sono e arrasta-os suavemente até ao mar."
"olhando as nuvens que rolavam pelo céu, a relva da margem aveludada e amarelecida pelos raios do sol, escutando o barulho da água e o tremular das copas das árvores que se mexiam ainda que não houvesse vento, sozinho, agitado e calmo ao mesmo tempo, senti-me desfalecer de volúpia ao peso desta natureza sedutora e convoquei o amor! Os meus lábios tremiam, avançavam, como se eu tivesse sentido o sopro de uma outra boca, as minhas mão procuravam qualquer coisa para palpar, o meu olhar tentava descobrir, no contorno das nuvens volumosas, uma forma, um prazer, uma revelação; saía desejo de todos os meus poros, o meu coração enternecia-se e enchia-se de uma harmonia contida, mexia no cabelo da minha própria cabeça, acariciava o meu rosto, tinha prazer em respirar o seu odor, estendia-me no musgo, ao pé das árvores, desejava langores maiores; quisera ser sufocado por rosas, quisera ser desfeito a beijos, ser a flor que o vento sacode, a margem que o rio humedece, a terra que o Sol fecunda."
"as duquesas debruçadas às janelas das portinholas brasonadas, pareciam sorrir-me, convidavam-me a amores sobre seda; do alto das suas varandas, damas de xaile adiantavam-se para me ver e olhavam-me dizendo: ama-nos! Ama-nos! Todas me amavam na sua atitude, nos seus olhos, até na sua imobilidade, via-o bem. E depois a mulher estava por toda a parte, eu roçava nela, aflorava-a, respirava-a, o ar estava cheio do seu odor; via-lhes o pescoço suado entre o xaile e as plumas do chapéu ondulando com o seu andar; o tacão levantava o vestido quando ela caminhava à minha frente."
"Quando considerei a minha vida passada e a minha vida presente, isto é, esperar a o correr dos dias e a lassidão que me acabrunhava, fiquei sem saber em que canto da minha existência tinha o meu coração, se sonhava ou agia, se estava cheio de repugnância ou cheio de desejo, pois tinha oa mesmo tempo as náuseas da saciedade e o ardor das esperanças.
Não passava então disto, amar! Era então somente isto, uma mulher! Ó, meu Deus, porque temos ainda fome quando já estamos fartos? Porquê tantas aspirações e tantas decepções? Porque é tão grande o coração do homem e tão pequena a vida? Há dias em que não lhe bastaria sequer o amor dos anjos e em que numa hora se cansaria de todas as carícias do mundo.
Mas, desvanecida a ilusão, fica em nós o seu odor de fada e procuramos os seus vestígios nos caminhos por onde ela fugiu; confortamo-nos dizendo que nem tudo acabou logo, que a vida está apenas a começar, que todo um mundo se abre diante de nós. Realmente, teremos dispendido tantos sonhos sublimes, tantos desejos fervorosos para chegar a isto?"
"Bem depressa, com um salto de alegria, veio até mim e tomou-me nos seus braços. Tivemos ali um desses abraços frementes, como devem ter os amantes à noite, nos seus encontros, quando, depois de terem estado muito tempo de olhar pousado nas trevas à espreita de um marulhar das folhas, de cada forma vaga que passe na clareira, se encontram e trocam um beijo."
"Foi quando se deitou junto de mim que me apresentou, com um orgulho de cortesã, todos os esplendores da sua carne. Vi a nu o seu colo firme e sempre dilatado por um murmúrio tempestuoso, o seu ventre de nácar com um umbigo cavado, um ventre clássico e convulsivo, macio para nele mergulhar a cabeça como num travesseiro de cetim quente; tinha umas ancas soberbas, verdadeiras ancas de mulher, cujas coxas, perdendo-se numa coxa redonda, recordavam sempre, de perfil, não sei que forma de serpente e de demónio; o suor que molhava a sua pele tornava-a fresca e aderente, na noite os seus olhos brilhavam de uma maneira terrível e a pulseira de âmbar que trazia no braço direito tilintava quando ela se apoiava no lambrim da alcova."
"Eram as primeiras palavras de amor que ouvia na vida. Venham donde vierem, o nosso coração recebe-as com um sobressalto feliz."
"Oh! Se pudéssemos extrair de nós tudo o quecá temos e fazer um ser só de pensamento! (...) Foi para para me recordar dela que escrevi tudo isto, na esperança de que as palavras ma trouxessem de novo viva; não consegui, sei muito mais do que o que disse.
(...) Amar uma mulher dessas?, ter-me-iam dito e, desde logo, ninguém compreenderia; sendo assim, para quê abrir a boca?
Teriam tido razão, ela não era talvez nem mais bela nem mais ardente que qualquer outra, receio amar apenas uma concepção do meu espírito e não acarinhar nela mais que o amor que me fez sonhar."
"E separou-se de tudo isso com pena; são talvez os lugares que mais maldissemos que preferimos aos outros: não têm os presos saudades da sua prisão? É que, nessa prisão, tinham esperança e depois de saírem já não a têm;"
"Outras vezes voltavam-lhe as forças e ele endireitava-se de repente, como uma mola. Então o trabalho surgia-lhe cheio de encanto e a irradiação do pensamento fazia-o sorrir com esse sorriso plácido e profundo dos sábios; logo deitava mãos à obra, tinha planos soberbos, queria dar a conhecer certas épocas a uma luz inteiramente nova, ligar a arte à história, comentar os grandes poetas e os grandes pintores, para tal aprender línguas, remontar à antiguidade, entrar no Oriente; via-se já a decifrar obeliscos; depois achava-se louco e voltava a cruzar os braços.
(...)
Desgastado pelo tédio, hábito terrível, e encontrando mesmo um certo prazer no embrutecimento que é a sua sequela, era como as pessoas que se vêem morrer, já não abria a janela para respirar ar, já não lavava as mãos, vivia mesmo numa imundície de pobre, a mesma camisa servia-lhe uma semana, deixou de fazer a barba e pentear o cabelo. (...)
Fácil é perceber que não tinha objectivo e esse é que é o mal. Quem poderia animá-lo, comovê-lo? O amor? Afastava-se dele; a ambição dava-lhe vontade de rir, quanto ao dinheiro, a sua cupidez era muito grande, mas a sua preguiça levava a melhor e depois, um milhão era coisa que não lhe parecia valer o trabalho de a conquistar;"
"Recomendou que o abrissem, com medo de ser enterrado vivo, mas proibiu terminantemente que o embalsamassem."