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mikesparrow's Reviews (220)


Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras dc ginástica solteiras, pinguins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros: no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam-se sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares.

E lá fora, indiferente à música fosca que os altifalantes embaciavam, aos lamentos viúvos do boi-cavalo, à jovialidade de pandeiretas cansadas dos excursionistas e ao pasmo da minha admiração comovida, o professor preto continuava a deslizar imóvel no rinque de patinagem debaixo das árvores com a majestade maravilhosa e insólita de um andor às arrecuas.

No vestíbulo havia um espelho biselado que de noite se esvaziava de imagens e se tornava tão fundo como os olhos de um bebé que dorme, capaz de conter em si todas as árvores do Jardim e os orangotangos dependurados das suas argolas à laia de enormes aranhas congeladas. Por essa época, eu alimentava a esperança insensata de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hipérboles majestáticas do professor preto, vestido de botas brancas e calças cor-de-rosa, deslizando no ruído de roldanas com que sempre imaginei o voo difícil dos anjos de Giotto, a espanejarem nos seus céus bíblicos numa inocência de cordéis. As árvores do rinque fechar-se-iam atrás de mim entrelaçando as suas sombras espessas, e seria essa a minha forma de partir. Talvez que quando eu for velho, reduzido aos meus relógios e aos meus gatos num terceiro andar sem elevador, conceba o meu desaparecimento não como o de um náufrago submerso por embalagens de comprimidos, cataplasmas, chás medicinais e orações ao Divino Espírito Santo, mas sob a forma de um menino que se erguerá de mim como a alma do corpo nas gravuras do catecismo, para se aproximar, em piruetas inseguras, do negro muito direito, de cabelo esticado a brilhantina, cujos beiços se curvam no sorriso enigmático e infinitamente indulgente de um buda de patins.

Falar em ampolas bebíveis dá-me sempre sede de líquidos xaroposos, amarelos, na esperança insensata de descobrir, por intermédio deles e da suave e jovial tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas, a quadratura do círculo das emoções.

Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?

Encontrávamo-nos às vezes, à noite, na amurada, ele de livro em punho e eu de mãos nos bolsos, para fitar as mesmas ondas negras e opacas em que reflexos ocasionais (de que luzes? de que estrelas? de que gigantescas pupilas?) saltavam corno peixes, como se buscássemos, naquela escura extensão horizontal que as hélices do barco aravam, uma esclarecedora resposta a inquietações informuladas. Perdi esse padre de vista (uma das minhas sinas, aliás, consiste em perder rapidamente de Vista todos os padres e todas as mulheres que encontro) mas recordo corn a nitidez de um pesadelo infantil a sua careta de Noé perplexo, embarcado à força numa arca de bichos com cólicas, que arrancaram às florestas natais das suas repartições, das suas mesas de bilhar e dos seus clubes recreativos, para os lançar, em nome de ideais veementes e imbecis, em dois anos de angústia, de insegurança e de morte. Acerca da veracidade desta última, de resto, não sobejavam dúvidas: grandes caixões repletos de féretros ocupavam uma parte do porão, e o jogo, um pouco macabro, consistia em tentar adivinhar, observando os rostos dos outros e o nosso próprio, os seus habitantes futuros. Aquele? Eu? Ambos? O major gordo lá ao fundo a conversar com o alferes de transmissões? Sempre que se examina exageradamente as pessoas elas começam a adquirir, insensivelmente, não um aspecto familiar mas um perfil póstumo, que a nossa fantasia do desaparecimento delas dignifica. A simpatia, a amizade, uma certa ternura até, tornam-se mais fáceis, a complacência surge sem custo, a idiotia ganha a sedução amável da ingenuidade. No fundo, claro, é a nossa própria morte que tememos na vivência alheia e é em face dela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes.


É capaz de amar? Desculpe, a pergunta é tola, todas as mulheres são capazes de amar e as que o não são amam-se a si próprias através dos outros, o que na prática, e pelo menos nos primeiros meses, é quase indistinguível do afecto genuíno. Não faça caso, o vinho segue o seu curso e daqui a nada peço-lhe para casar comigo: é o costume. Quando estou muito só ou bebi em excesso, um ramalhete de flores de cera de projectos conjugais desata a crescer em mim à maneira do bolor nos armários fechados, e torno-me pegajoso, vulnerável, piegas e totalmente débil; é o momento, aviso-a, de se retirar à sorrelfa com uma desculpa qualquer, de se meter no carro num suspiro de alívio, de telefonar depois do cabeleireiro às amigas a narrar-lhes entre risos as minhas propostas sem imaginação. No entanto e até lá, se não vê inconveniente, aproximo um pouco mais a minha cadeira e acompanho-a durante urn copo ou dois.

Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e reflectem umas às outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, porque o céu é feito de pombos próximos, consiste numa magra fatia de rio que os gumes de duas esquinas apertam, e o braço de um navegador de bronze atravessa obliquamente num ímpeto heróico. Nasci e cresci num acanhado universo de crochet, crochet de tia-avó e crochet manuelino, filigranaram-me a cabeça na infância, habituaram-me à pequenez do bibelot, proibiram-me o canto nono de Os Lusíadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o lenço em lugar de partir. Policiaram-me o espirito, em suma, e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a cálculos horários de amanuense cuja caravela de aportar às Índias se metamorfoseou numa mesa de fórmica com esponja em cima para molhar os selos e a língua. Já lhe aconteceu sonhar de cotovelos apoiados num desses tampos horríveis e acabar o dia num terceiro andar de Campo de Ourique ou da Póvoa de Santo Adrião, a ouvir crescer a própria barba nos serões vazios? Já sofreu a morte quotidiana de acordar todas as manhãs ao lado de uma pessoa que mornamente se detesta? Irem os dois para o emprego no carro, olheirentos de sono, pesados já de decepção e cansaço, ocos de palavras, de sentimentos, de vida? Pois imagine que de repente, sem aviso, todo esse mundo em diminutivo, toda essa teia de hábitos tristes, toda essa reduzida melancolia de pisa-papéis em que neva lá dentro, em que neva monotonamente lá dentro, se evaporava, as raizes que a prendem a resignações de almofada bordada desapareciam, os elos que a agarram a pessoas que a aborrecem se quebravam e você acordava numa camioneta, não muito confortável, é certo, e cheia de tropas, é verdade, mas circulando numa paisagem inimaginável, onde tudo flutua, as cores, as árvores, os gigantescos contornos das coisas, o céu abrindo e fechando escadarias de nuvens em que a vista tropeça até cair de costas, como um grande pássaro extasiado.

As madrugadas, de resto, são o meu tormento, gordurosas, geladas, azedas, repletas de amargura e de rancor. Nada vive ainda e, todavia, uma ameaça indefinível ganha corpo, aproxima-se, persegue-nos, incha-nos no peito, impede-nos de respirar livremente, as pregas do travesseiros petrificam-se, os móveis, agudos, hostilizam-nos.

Já reparou que a esta hora da noite e a este nivel do álcool o corpo se começa a emancipar de nós, a recusar-se a acender o cigarro, a segurar o copo numa incerteza tacteante, a vaguear dentro da roupa oscilações de gelatina? O encanto dos bares, não é, consiste em, a partir das duas da manhã, não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terrestre e a seguir verticalmente para o céu no esvoaçar místico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do espírito, e inicia uma dança pastosa de estátua de cera que se funde até terminar nas lágrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica, o triste esqueleto da solidão sem remédio. (...) porque, sabe como é, o vodka confunde os tempos e abole as distâncias, você chama-se na realidade Ava Gardner e consome oito toureiros e seis caixas de Logan por semana, e, quanto a mim, o meu verdadeiro nome é Malcolm Lowry, sou escuro como o túmulo onde jaz o meu amigo, escrevo romances imortais, recomendo Le gusta este jardin que es suyo? evite que sus hijos lo destruían, e o meu cadáver será lançado na última página, como o de um cão, para o fundo de um barranco.


Pensei que nunca soubera de facto mostrar-lhes quanto gostava deles, por timidez ou por pudor, e a ternura tantos anos reprimida trazia-meà boca o sabor amargo do remorso e o desgosto de haver frustrado as suas pequenas esperanças ao trans. formar a minha vida numa sucessão sem nexo de cambalhotas desastrosas. Planos grandiloquentes, em que Freud, Goethe e São Francisco de Assis convergiam e se combinavam, começaram a grelar-me na cabeça arrependida, à laia de feijões no algodão molhado das experiências do liceu, milagres de algibeira para Lavoisiers mongolóides: se regressasse vertical, jurava eu a mim mesmo num fervor de peregrino de Compostela, afadigar-me-ia a construir, a partir do meu nada confuso, a digna estátua de bronze do marido e do filho ideais, talhado segundo o modelo das pagelas dos mortos no missal da avó, criaturas repletas de qualidades e virtudes à Santa Teresinha e das quais conhecia apenas os sorrisos resignados. Talvez até que me increvesse nos escuteiros a fim de pastorear, de apito, calções e autoridade paciente, um grupo de adolescentes borb‘ulhosos através do Museu dos Coches, ou vagueasse pelas esquinas ã cata de anciões de bengala com dificuldades em atravessar. Far-me-ia irmão do Santíssimo, clarinete de filarmónica, coleccionador de dentaduras postiças no intuito de expulsar do insuportável sossego dos serões o meu eterno e deletério desejo de evasão. Calaria para sempre a vozinha interior que na cabeça me reclama, teimosa, proezas de Zorro. E ao termo de dolorosa enfermidade suportada com resignação cristã e confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja, ingressaria por meu turno no panteão do missal da avó a juntar-me a uma extensa galeria de chatos bondosos, apontado como exemplo a netos indiferentes, que considerariam com enfado a absurda mornidão da minha existência.


(...) a mão que o friccionava contra os seios, a boca que o bebia, os calcanhares a lavrarem-me as nádegas, o silêncio exausto, de marionetes desabitadas de dedos, de depois.


(...) na Madeira, os pides borravam-se de medo em Caxias, uma festa de labaredas vermelhas alastrava triunfalmente em Lisboa, quiero que me perdones los muertos de mi felicidad, los muertos de mi felicidad no cacimbo de Angola, seis meses de cacimbo enevoado e capim amarelo a arder ao longe, perdoe-me os mortos da minha felicidade quando lhe seguro na mão, quando os meus joelhos apertam os seus, quando a minha boca vai tocar na sua e os olhos se fecham devagar como corolas nocturnas, todos os meus ontens se encontram presentes neste beijo, talvez que as múmias do bar se esfarelem como os vampiros à aproximação do dia num concerto de dobradiças que se quebram, todos os meus ontens, percebe (...)

(...) dezenas de manequins de cera ocuparam este bar oscilando feições compridas de cavalos de loiça, mulheres e homens em cuja desilusão defensiva e maligna me recuso a reconhecer a imagem fragmentária da minha própria derrota, por teimar em pertencer ao grupo das sarças ardentes onde a melancolia apaixonadamente devagar se consome em labaredazinhas magoadas, e depois, sabe como é, a noite chegou de imprevisto à maneira de uma cortina de teatro cobrindo de pregas de ausência os actores exaustos, o motor da luz principiou a trabalhar num ruido de táxi, a lâmpada da messe empalidecia e corava, empalidecia e corava, empalidecia e corava, sentei-me defronte do capitão (...)


(...) e o soba, septuagenário em farrapos reinando sobre um povo côncavo de fome, trazia-me à lembrança uma velha amiga aristocrática da minha mãe que vivia com os cães e as filhas num andar desabitado de móveis, de pegadas rectangulares dos quadros nas paredes desertas e a falta das terrinas assinalada por uma auséncia de pó nas prateleiras dos armários. Um enxame de credores impacientes, padeiro, leiteiro, mercearia, talho, etc, agitava-se à volta dela brandindo ameaçadoramente facturas por pagar, as criadas exigiam aos gritos os ordenados em atraso, antigos lutadores de feira, de fato-macaco, destroçados pela erosão marinha do bagaço, empurravam pelas escadas, a caminho do prego, o piano de cauda que soltava de tempos a tempos o ganido de protesto de um lá desafinado. E majestosamente alheia aos credores, às criadas, à lamentosa partida do piano, aos cachorros que urinavam no tapete numa sem-cerimónia medieval, a amiga, instalada num sofá de que as molas atravessavam o veludo como as claviculas das mulas idosas o couro gasto dos seus ombros, mantinha a postura soberba das princesas exiladas, para quem os relógios rodam para trás, marcando horas que já foram.


Acaba de nascer e a essa hora as senhoras do Movimento Nacional Feminino devem estar pensando em nós sob os capacetes marcianos dos secadores dos cabeleireiros, os patriotas da União Nacional pensam em nós comprando roupa interior preta, transparente, para as secretárias, a Mocidade Portuguesa pensa em nós preparando carinhosamente heróis que nos substituam, os homens de negócios pensam em nós fabricando material de guerra a preço módico, o Governo pensa em nós atribuindo pensões de miséria às mulheres dos soldados, e nós, mal agradecidos, alvos de tanto amor, saímos do arame em que apodrecemos para morrer por perversidade de mina ou emboscada, ou deixamos negligentemente filhos sem pais a quem ensinam a apontar com o dedo o nosso
retrato ao lado da televisão, em salas de estar onde tão-pouco estivemos. O alferes Eleutério, pequenino e enrugado, com quem fora ter à mata, numa Mercedes, quando um dos seus homens perdera a perna numa antipessoal e se torcia, ainda consciente, na areia, pousou a mão, sem falar, no meu ombro, e foi essa, percebe, uma das raras vezes em que até hoje me achei acompanhado.


Uma fieira de táxis imóveis alongava-se diante do aeroporto, sob a noite e a chuva, solenes como nos cortejos de enterro, pilotados por cabeças que se distinguiam mal no escuro dos estofos, mas que deviam fungar as sinusites perpétuas dos infelizes resignados. O halo de claridade dos candeeiros aparentava-se às auréolas fumosas dos santos nos quadros das igrejas, e eu pensei, fitando as trevas desabitadas e murchas que uma aurora improvável desbotava, Afinal é isto Lisboa, na mesma desilusão incrédula com que visitara a casa de Nelas, muitos anos depois, e descobrira compartimentos exíguos e sem mistério onde tinha deixado enormes salas reboantes percorridas pelo sopro de epopeia da infância. (...)
A minha lembrança grandiosa de uma capital cintilante de agitação e de mistério coplada de John dos Passos, que alimentara fervorosamente durante um ano nos areais de Angola, encolhia-se envergonhada defronte de prédios de subúrbio onde um povo de terceiros-escriturários ressonava entre salvas de casquinha e ovais de crochet.


De modo que trepei os degraus com a mala a arrastar atrás de mim à laia de uma cauda incómoda e uma explosão de lágrimas a inchar, enovelada, na garganta, encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço dormindo ambas na mesma crispação desprotegida feita da fragilidade e abandono, e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia ainda dos ecos da guerra, do som dos tiros e do silêncio indignado dos mortos, a escutar, sabe como é, os sonos que se entrelaçavam numa rede complicada de hálitos, um tornozelo da minha mulher sobrava, pendente, dos lençóis, e eu comecei a afagá-lo de leve até ela acordar, afastar os cobertores sem uma palavra, e me receber inteiro na cova morna do colchão. A voz gorda do tenente, rebolando de muito longe, repetia Pôr o selo na patroa, pôr o selo na patroa, pôr o selo na patroa, doutor é preciso pôr o selo na patroa, os capitães vindos de sargentos jogavam as damas na messe, o Ferreira cicatrizava o coto da perna que já não tinha, no Luso, e eu sentia-me a fazer amor por todos eles, entende, a vingar o sofrimento e a angústia de todos eles num corpo aberto como uma corola nocturna, a cerrar-se devagar sobre os meus rins exaustos.


Um sol alegre como o riso de um polícia toca xilofone nas persianas.


Em casa, a alcatifa bebe o som dos meus passos reduzindo-me ao eco ténue de uma sombra, e tenho a impressão, ao barbear-me, que quando a lâmina me retirar das bochechas as suíças de Pai Natal mentoladas da espuma, apenas ficarão de mim as órbitas a boiarem, suspensas, no espelho, indagando ansiosamente pelo corpo que perderam.



Um duplo sem gelo? Tem razão, talvez desse modo logre a lucidez sem ilusões dos bêbados de Hemingway que passaram, gole a gole, para o outro lado da angústia, alcançando uma espécie de serenidade polar, vizinha da morte, é certo, mas que a ausência de esperança e do frenesim ansioso que ela inevitavelmente traz consigo torna quase apaziguadora e feliz, e consiga enfrentar a ferocidade da manhã dentro de um frasco de Logan que a proteja, tal como os cadáveres dos bichos se conservam em líquidos especiais nas prateleiras dos museus. Talvez desse modo se consigam sorrir risos de Sócrates depois da cicuta, levantar-se do colchão, ir à janela, e defronte da cidade matinal, nítida, atarefada, ruidosa, não se sentir perseguido pelos impiedosos fantasmas da própria solidão, de que os rostos sardónicos e tristes, tão semelhantes ao nosso, se desenham no vidro para melhor nos troçarem: há derrotas, percebe, que a gente sempre pode transformar, pelo menos, em vitoriosas calamidades.


(...) nenhum de nós sente pelo outro mais do que uma cumplicidade de tuberculosos num sanatório, feita da melancólica tristeza de um destino comum: já vivemos demais para correr o risco idiota de nos apaixonarmos, de vibrarmos nas tripas e na alma exaltações de aventura, de nos demorarmos tardes a fio diante de uma porta fechada (...)
Não é em si que não acredito, é em mim, na minha repugnância em me dar, no meu pânico de que me queiram, na minha inexplicável necessidade de destruir os fugazes instantes agradáveis do quotidiano, triturando-os de acidez e ironia até os transformar no Cerelac da chata amargura habitual. O que seria de nós, não é, se fôssemos de facto felizes? Já imaginou como isso nos deixaria perplexos, desarmados, mirando ansiosamente em volta em busca de uma desgraça reconfortadora, como as crianças procuram os sorrisos da família numa festa de colégio? Viu por acaso como nos assustamos se alguém, genuinamente, sem segundos pensamentos, se nos entrega, como não suportamos um afecto sincero, incondicional, sem exigência de troca? (...)
Possuímos pelo menos a vantagem, sabe como é, de dormir sozinhos, sem uma perna alheia a explorar as zonas frescas do lençol que por direito geográfico nos cabem, mas falta-nos simultaneamente alguém que possamos culpar do nosso fundo descontentamento de nós próprios, um alvo fácil para os nossos insultos, uma vitima, em suma, da nossa mediocridade despeitada.

Existe uma classe de pessoas, vulgares e quase-mortas, que mal têm consciência de
estarem vivas excepto em pleno exercicio de alguma ocupação convencional. Levem um destes individuos ao campo, ou numa viagem marítima, e vereis como anseia por regressar à secretária ou ao gabinete. São desprovidos de curiosidade; não conseguem entregar-se a paixões momentâneas;

Como se a alma humana não fosse já demasiado pequena, encolheram as suas ainda mais, com uma vida inteira de trabalho e pouco ócio;

Os prazeres são mais proveitosos que os deveres, porque, tal como a virtude da misericórdia, não são forçados e oferecem uma dupla bênção. Duas pessoas bastam para um beijo, enquanto uma festa admite uma dúzia; mas sempre que existe um elemento de sacrifício o favor é conferido com sofrimento e, entre pessoas generosas, recebido com confusão. Não há dever
tão subestimado como o dever de ser feliz (...)
Um homem ou mulher feliz é uma
descoberta mais afortunada do que uma nota de cinco. Ele ou ela tornam-se um foco que irradia boa vontade; e quando entram numa sala é como se uma segunda candeia se alumiasse. Não é importante sabermos se seriam capazes de enunciar o quadra-
gésimo sétimo problema, pois fazem algo mais valioso que isso, demonstrando na prática o grande Teorema da Vivibilidade da Vida. Consequentemente, se uma pessoa não consegue ser feliz sem ser ociosa, então ociosa deve permanecer.

Pouco me importa que trabalhe tanto ou tão bem, um indivíduo assim é uma mancha perversa nas vidas dos outros. (...)
E no entanto vemos mercadores que se esforçam por acumular grandes fortunas e acabam no tribunal das falências; escribas
que laboram nos seus pequenos artigos ate que o seu temperamento se transforma numa cruz para todos carregarem, como se o Faraó tivesse ordenado aos escravos que fabricassem agulhas em vez de erguerem pirâmides; e jovens que trabalham até à morte, para serem transportados em carros fúnebres adornados com plumas brancas. Não é de supor que algum mestre-de-cerimónias terá sussurrado aos seus ouvidos a promessa de um destino magní-
fico? E que essa tépida bala pela qual viveram uma farsa se dirigia ao centro do universo inteiro?

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Não há lei que chegue ao Parlamento sem que antes tenha sido preparada pelo grande júri dos conversadores; livro algum é publicado que não tenha sido es crito
com a sua inestimável colaboração. A literatura, em todas as suas vertentes, não é senão a sombra de uma boa conversa; mas essa imitação fica muito aquém do original em vitalidade, liberdade e efeito.

Em último lugar, enquanto a literatura, amordaçada com um trapo de seriguilha, apenas pode tratar de uma fraccão da vida humana, uma conversa pode libertar-se
e chamar os bois pelos nomes. Não consegue, mesmo que o quisesse, tornar-se meramente estética oumeramente clássica, como a literatura. Uma laracha intromete-se, a impostura é dissolvida pelo riso, e as palavras emancipam-se dos seus trilhos con-
temporâneos, desbravando o campo aberto da natureza, alegres e bem-dispostas, como rapazes fora da escola.

Na verdade, a conversa é, ao mesmo tempo, o cenário e o instrumento da amizade.

Existem, aliás, poucos temas; e, dentro dos
que são genuinamente merecedores de provocar uma conversa, mais de metade podem ser reduzidos a três: que eu sou eu, que tu és tu, e que há outras pessoas que percebemos vagamente serem diferentes
de nós dois. Por maior distância que uma conversa percorra, andará quase sempre por estes caminhos eternos. E quando o tema é estabelecido, cada um toca a sua própria personalidade como um instrumento; afirma e justifica-se; saqueia o seu cérebro à procura de exemplos e opiniões, e exibe-os cunhados de fresco, para sua própria surpresa e consternação do adversário. Toda a conversa natural é um festival de ostentação; e faz parte das regras do jogo
que cada um aceite e inflame as vaidades do outro. É por esse motivo que arriscamos tão vulnerável exposição, que nos atrevemos a ser tão ternamente eloquentes, e que assumimos perante o olhar do outro uma dimensão tão vasta. Pois quem conversa, ao atingir o seu ritmo, começa a extravasar os limites da personalidade quotidiana, elevando-se às alturas das suas secretas pretensões, e transformando-se a figura heróica, corajosa, piedosa, artística e sábia
que, nos seus momentos mais arrebatados, aspira a ser. E assim tece com palavras, e por momentos habita, um palácio das delícias, simultaneamente
palco e templo, onde completa o círculo dos dignitários do mundo, e se senta à mesa com os deuses, exultando na aclamação geral. E quando a conversa termina, cada um segue o seu caminho, ainda com o rubor da vaidade e admiração no rosto, ainda arrastando atrás de si nuvens de glória; cada um desce do pedestal que idealizou, não de repente, mas num lento declínio.

A conversa é uma criatura da rua e do
mercado, que se alimenta de bisbilhotices; e mesmo o seu último recurso não deixa de ser um debate moral. Essa é a forma heróica da bisbilhotice; heróica em virtude das suas elevadas pretensões; mas bisbilhotice ainda assim, pois o seu alvo são perso-
nalidades. Dois homens em conversa estão condenados, mais tarde ou mais cedo -
mais cedo caso sejam escoceses -
a envolver-se numa discussão moral ou
teológica. Estas são, para o mundo em
geral, o que as discussões sobre leis são para os advogados; são as questões de ordem técnica que todos compreendemos; o meio através do qual tecemos considerações sobre a vida, e o dialecto que
usamos para emitir julgamentos. Conheço três jovens amigos que todos os dias durante dois meses passeavam juntos pela floresta durante um belo Verão de céus limpos: diariamente conversavam com incessante entusiasmo, e raramente se afastaram de dois temas- teologia e amor. E no entanto, creio que nem um tribunal do amor nem uma assembleia de teólogos concordaria com uma única das suas premissas ou conclusões. Não se chega, na verdade, a conclusões no decorrer de uma conversa com maior frequência do que
acontece em pensamentos privados. Nem é esse o objectivo. O proveito reside no exercício, e acima de tudo na experiência; pois quando raciocinamos demoradamente sobre qualquer assunto, passamos em revista a nossa própria condição e trajectória na vida. De quando em vez, no entanto, e especialmente, creio, em conversas sobre arte, a conversa torna-se eficaz, capaz de conquistas como a guerra, e de alargar as fronteiras do conhecimento como a exploração. Coloca-se uma questão; esta assume uma dimensão problemática, desconcertante, e todavia estimulante; os conversadores começam a pressentir uma conclusão próxima; avançam nessa direcção com ardor partilhado, cada um pelo seu caminho, disputando o direito de lá chegar primeiro; e depois um deles atinge o cume do assunto com um grito, e quase ao mesmo tempo o outro junta-se a ele; e, olhai!, ambos concordam. Ainda assim, o progresso é ilusório, um mero castelo de cartas, erguido e derrubado com palavras. Mas a sensação
de descoberta mútua não deixa de ser estonteante e inspiradora. E na vida de um conversador, tais triunfos, ainda que imaginários, não são poucos nem raros; são sempre alcançados com velocidade
e prazer, numa ocasião alegre; e, pela própria natureza do processo, são sempre proveitosamente partilhados.

Há uma certa atitude, ao mesmo tempo combativa e deferente, ansiosa pela disputa, mas adversa à discussão, que distingue de imediato o género de homem com quem se pode conversar. Não se trata de eloquência, nem obstinação, mas de uma mistura proporcional de todos estes atributos, que mais gosto de identificar nos meus adversários amigáveis. Não devem ser como pontífices a doutrinar, mas como caçadores seguindo o rasto de alguns elementos da verdade. Nem devem ser como rapazes
à espera de instrução, mas como colegas professores, com quem eu possa debater e concordar de igual para igual. Devemos chegar a uma solução, a alguma sombra de consenso; pois, sem isso, a conversa torna-se uma tortura. Mas também não devemos querer lá chegar gratuitamente, ou demasiado depressa, sem o esforço e a peleja que são a fonte do prazer.

Com ambos, é possível passar dias a fio numa terra encantada, com pessoas, paisagens e costumes próprios; viver
uma vida paralela, mais árdua, activa e incandescente que qualquer existência real; e regressar de novo quando a conversa termina, como quem sai de um teatro ou
desperta de um sonho, para descobrir que
o vento ainda sopra de leste e que as chaminés da velha cidade decrépita ainda se erguem à nossa volta.

Há frases dele nas quais conseguiu estampar a sua personalidade no próprio grão da linguagem; quase acreditamos que usou as palavras no corpo e dormiu com elas.

Na primeira, é radiosamente educado e até algo silencioso, como se sentado num trono no topo de uma colina, abençoando-nos com as suas observações como se fossem favores reais. Nunca parece implicado nas nossas contendas terrenas; não mostra qualquer sinal de interesse; e de repente deixa cair um pequeno cristal de perspicá-
cia, tão subtil que os mais obtusos nem dão conta, mas tão apropriado que os mais sensíveis se remetem ao silêncio.


Descansam pouco, é verdade; mas o sossego é virtude do gado.

Outros procuram numa conversa não tanto o conhecimento ou a clareza de pensamento, mas o contacto com os seus congéneres. É o drama da vida, e não a sua filosofia, que lhes estimula a actividade intelectual. Mesmo quando buscam a verdade, desejam
tanta paisagem humana quanto possivel ao longo da viagem.

Mas a superioridade das mulheres está perpetuamente sob ameaça; ao contrato dos mais velhos, não podem repousar no trono das suas enfermidades; são súbditos, além de soberanos.