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mikesparrow's Reviews (220)
“Alguns dos livros estavam cobertos de terra porque eles tiveram de os enterrar – de os esconder – quando foram proibidos.” Ngũgĩ wa Thiong'o
“De facto, numa cidade que não se deixa intimidar por reputações literárias, o ar agita-se sempre que ele [David Foster Wallace] aparece.”
“A imigração não é aquela coisa alegre em que cada dia é melhor que o anterior. Muitas vezes, é uma questão de atirarmos pessoas borda fora, de modo a ficarmos nós.” Kiran Desai
“Publicar um livro de poesia continua a ser como deixá-lo cair de uma ponte e esperar que se ouça o estrondo. Habitualmente, não se ouve nada.” Lawrence Ferlinghetti
“De facto, numa cidade que não se deixa intimidar por reputações literárias, o ar agita-se sempre que ele [David Foster Wallace] aparece.”
“A imigração não é aquela coisa alegre em que cada dia é melhor que o anterior. Muitas vezes, é uma questão de atirarmos pessoas borda fora, de modo a ficarmos nós.” Kiran Desai
“Publicar um livro de poesia continua a ser como deixá-lo cair de uma ponte e esperar que se ouça o estrondo. Habitualmente, não se ouve nada.” Lawrence Ferlinghetti
"A seus olhos, os filhos eram uma daquelas fatalidades da vida, contra as quais não pensava ser correcto protestar, mas que não faziam vibrar uma só corda do seu ser mais íntimo, completamente ocupado com os numerosos pormenores da vida prática."
"À sua frente apenas tinha o presente na forma de uma prisão hermeticamente fechada, onde desapareciam sem deixar vestígios as ideias de espaço e de tempo. Não podia penetrar outros
horizontes para além do quarto, da lareira, das três janelas na parede externa, da cama de madeira que estalava, com um colchão fino e duro, da mesa onde estava a garrafa. Mas, à medida que diminuía o conteúdo da garrafa, a cabeça ardia-lhe mais - e até essa limitada consciência era
de mais para ele. O seu murmúrio, que a principio ainda tinha uma certa forma, acabava por ficar totalmente absurdo; as pupilas, dilatadas em resposta à escuridão, aumentavam enormemente; a própria escuridão acabava por desaparecer e, em vez dela, surgia um vazio cheio de uma
fosforescência brilhante. Era um vazio infinito, sem vida, sinistramente radiante, que não respondia a um único som de vida. Esse vazio perseguia todos os seus passos. Não havia paredes, não havia janelas, nada existia a não ser aquele vazio infinito e luminoso. Ficava com medo; queria apagar a realidade para além daquelas paredes para que o vazio desaparecesse. Alguns esforços mais e atingia 0 seu objectivo. Umas pernas cambaleantes levavam de um lado para o outro o seu corpo insensível, o peito arfava-lhe não com murmúrios mas com um grito, a própria existência como que cessava. Caía numa estranha dormência em que, embora sem quaisquer indícios conscientes de vida, havia ao mesmo tempo uma outra vida, seguindo o seu curso próprio. Do peito saíam-Ihe gemidos, mas sem lhe perturbarem o sono; a doença continuava a corroer-lhe o organismo, não causando, aparentemente, dores físicas.
De manhã, acordava com a luz, e com ele acordavam a angustia, o desgosto e o ódio. Era um ódio sem protestos, sem razões, um ódio por algo indefinido e vago. Os seus olhos inflamados paravam insensatamente num objecto, depois noutro, e fitavam-nos por muito tempo atentamente; mãos e pernas tremiam-lhe; o coração ora parava, como se se afundasse e caísse, ora batia com tanta força que a sua mão se agarrava instintivamente ao peito. Não tinha qualquer pensamento ou qualquer desejo. A lareira era em frente - e o seu cérebro estava tão ocupado com o reconhecimento da lareira que era inútil qualquer outra impressão. Depois, a janela substituía a lareira, janela, janela, janela... Não precisava de nada, nada, de nada precisava. Enchia o cachimbo, acendia-o mecanicamente e deixava-o cair das mãos antes de acabar de fumá-lo. A sua língua murmurava qualquer coisa, mas
evidentemente por simples hábito. O mais que fazia era sentar-se, calado, a olhar para um ponto. Seria bom beber um pouco para levantar os ânimos; seria bom aumentar a temperatura do organismo para se sentir vivo, ainda que fosse por pouco tempo, mas durante o dia não conseguia que lhe arranjassem vodka por dinheiro nenhum. Tinha de esperar pela noite para de novo criar aqueles momentos benditos em que o chão lhe desaparecia debaixo dos pés e em lugar daquelas quatro horríveis paredes se lhe abria um vazio luminoso e infinito."
"Nós, os russos, não temos sistemas de educação fortemente tendenciosos. Não nos condicionam, não nos treinam para futuros campeões e propagandistas desta ou daquela moral social, mas apenas nos deixam crescer como as urtigas crescem nas cercas. Por isso entre nós há pouquíssimos hipócritas e muitos mentirosos, fanáticos e palradores. Não temos necessidade de ser hipócritas por causa de quaisquer princípios desse tipo. Existimos totalmente livres, ou seja, vegetamos, mentimos e paramos espontaneamente sem quaisquer princípios."
"Rodeavam-no trivialidades, que o arrastavam, caindo sobre ele, esmagando-o. E Iúduchka não
conseguia dormir sob o peso das banalidades em que esperava refugiar a alma no dia seguinte."
"«Sim, o senhor!»
«Não me parece que seja assim. Parece-me que ele deu um tiro na cabeça. E quando isso se passou, eu estava aqui em Golovliovo e ele em Petersburgo. Como podia eu ter feito isso? Como podia eu tê-lo assassinado à distância de setecentas verstas?»
«Finge que não percebe, não é?»
«Não percebo. .. Deus é minha testemunha, não percebo!»
«E quem é que deixou o Volódia sem dinheiro? E quem é que lhe parou a mesada? Quem?»
«Ta-ta-ta! E porque é que ele casou contra vontade do pai?
«E, no entanto, deu-lhe autorização!»
«Quem? Eu? Valha-me Deus! Nunca dei autorização nenhuma! Nunca!»
«Bem, procedeu da sua maneira habitual. Consigo uma palavra tem dez sentidos, é preciso adivinhar!»
«Nunca lhe dei autorização! Na altura, ele escreveu-me: "Quero casar com Lidotchka, papá." Vê se percebes: "quero" e não "peço autorização". E eu respondi-lhe : "Se queres casar, casa, não posso impedir-te!" Foi assim.»"
"Era evidente, talvez, que a sua vida se tornara numa espécie de casa pública, à porta da qual qualquer pessoa podia bater desde que fosse alegre, jovem e estivesse bem fornecida materialmente. Claro que não se punha a questão de escolher a companhia por afinidades, mas de se acomodar a qualquer pessoa para fugir à solidão."
"Fantasiando deste modo, foi gradualmente ficando como embriagado. A terra fugia-lhe debaixo dos pés, parecia-lhe ter asas nas costas. Os olhos brilhavam-lhe, os lábios trémulos cobriam-se-lhe de espuma, o seu rosto empalidecia e ficava com um ar ameaçador. E, à medida que a sua fantasia aumentava, todo o ar à volta ficava povoado de fantasmas, com os quais travava imaginários combates. (...)
Não é fé, não é convicção, mas êxtase, deboche espiritual. (...)
Todos 0s actos da vida que não se relacionassem directamente com o mundo da sua fantasia eram realizados à pressa, quase com aversão."
"À sua frente apenas tinha o presente na forma de uma prisão hermeticamente fechada, onde desapareciam sem deixar vestígios as ideias de espaço e de tempo. Não podia penetrar outros
horizontes para além do quarto, da lareira, das três janelas na parede externa, da cama de madeira que estalava, com um colchão fino e duro, da mesa onde estava a garrafa. Mas, à medida que diminuía o conteúdo da garrafa, a cabeça ardia-lhe mais - e até essa limitada consciência era
de mais para ele. O seu murmúrio, que a principio ainda tinha uma certa forma, acabava por ficar totalmente absurdo; as pupilas, dilatadas em resposta à escuridão, aumentavam enormemente; a própria escuridão acabava por desaparecer e, em vez dela, surgia um vazio cheio de uma
fosforescência brilhante. Era um vazio infinito, sem vida, sinistramente radiante, que não respondia a um único som de vida. Esse vazio perseguia todos os seus passos. Não havia paredes, não havia janelas, nada existia a não ser aquele vazio infinito e luminoso. Ficava com medo; queria apagar a realidade para além daquelas paredes para que o vazio desaparecesse. Alguns esforços mais e atingia 0 seu objectivo. Umas pernas cambaleantes levavam de um lado para o outro o seu corpo insensível, o peito arfava-lhe não com murmúrios mas com um grito, a própria existência como que cessava. Caía numa estranha dormência em que, embora sem quaisquer indícios conscientes de vida, havia ao mesmo tempo uma outra vida, seguindo o seu curso próprio. Do peito saíam-Ihe gemidos, mas sem lhe perturbarem o sono; a doença continuava a corroer-lhe o organismo, não causando, aparentemente, dores físicas.
De manhã, acordava com a luz, e com ele acordavam a angustia, o desgosto e o ódio. Era um ódio sem protestos, sem razões, um ódio por algo indefinido e vago. Os seus olhos inflamados paravam insensatamente num objecto, depois noutro, e fitavam-nos por muito tempo atentamente; mãos e pernas tremiam-lhe; o coração ora parava, como se se afundasse e caísse, ora batia com tanta força que a sua mão se agarrava instintivamente ao peito. Não tinha qualquer pensamento ou qualquer desejo. A lareira era em frente - e o seu cérebro estava tão ocupado com o reconhecimento da lareira que era inútil qualquer outra impressão. Depois, a janela substituía a lareira, janela, janela, janela... Não precisava de nada, nada, de nada precisava. Enchia o cachimbo, acendia-o mecanicamente e deixava-o cair das mãos antes de acabar de fumá-lo. A sua língua murmurava qualquer coisa, mas
evidentemente por simples hábito. O mais que fazia era sentar-se, calado, a olhar para um ponto. Seria bom beber um pouco para levantar os ânimos; seria bom aumentar a temperatura do organismo para se sentir vivo, ainda que fosse por pouco tempo, mas durante o dia não conseguia que lhe arranjassem vodka por dinheiro nenhum. Tinha de esperar pela noite para de novo criar aqueles momentos benditos em que o chão lhe desaparecia debaixo dos pés e em lugar daquelas quatro horríveis paredes se lhe abria um vazio luminoso e infinito."
"Nós, os russos, não temos sistemas de educação fortemente tendenciosos. Não nos condicionam, não nos treinam para futuros campeões e propagandistas desta ou daquela moral social, mas apenas nos deixam crescer como as urtigas crescem nas cercas. Por isso entre nós há pouquíssimos hipócritas e muitos mentirosos, fanáticos e palradores. Não temos necessidade de ser hipócritas por causa de quaisquer princípios desse tipo. Existimos totalmente livres, ou seja, vegetamos, mentimos e paramos espontaneamente sem quaisquer princípios."
"Rodeavam-no trivialidades, que o arrastavam, caindo sobre ele, esmagando-o. E Iúduchka não
conseguia dormir sob o peso das banalidades em que esperava refugiar a alma no dia seguinte."
"«Sim, o senhor!»
«Não me parece que seja assim. Parece-me que ele deu um tiro na cabeça. E quando isso se passou, eu estava aqui em Golovliovo e ele em Petersburgo. Como podia eu ter feito isso? Como podia eu tê-lo assassinado à distância de setecentas verstas?»
«Finge que não percebe, não é?»
«Não percebo. .. Deus é minha testemunha, não percebo!»
«E quem é que deixou o Volódia sem dinheiro? E quem é que lhe parou a mesada? Quem?»
«Ta-ta-ta! E porque é que ele casou contra vontade do pai?
«E, no entanto, deu-lhe autorização!»
«Quem? Eu? Valha-me Deus! Nunca dei autorização nenhuma! Nunca!»
«Bem, procedeu da sua maneira habitual. Consigo uma palavra tem dez sentidos, é preciso adivinhar!»
«Nunca lhe dei autorização! Na altura, ele escreveu-me: "Quero casar com Lidotchka, papá." Vê se percebes: "quero" e não "peço autorização". E eu respondi-lhe : "Se queres casar, casa, não posso impedir-te!" Foi assim.»"
"Era evidente, talvez, que a sua vida se tornara numa espécie de casa pública, à porta da qual qualquer pessoa podia bater desde que fosse alegre, jovem e estivesse bem fornecida materialmente. Claro que não se punha a questão de escolher a companhia por afinidades, mas de se acomodar a qualquer pessoa para fugir à solidão."
"Fantasiando deste modo, foi gradualmente ficando como embriagado. A terra fugia-lhe debaixo dos pés, parecia-lhe ter asas nas costas. Os olhos brilhavam-lhe, os lábios trémulos cobriam-se-lhe de espuma, o seu rosto empalidecia e ficava com um ar ameaçador. E, à medida que a sua fantasia aumentava, todo o ar à volta ficava povoado de fantasmas, com os quais travava imaginários combates. (...)
Não é fé, não é convicção, mas êxtase, deboche espiritual. (...)
Todos 0s actos da vida que não se relacionassem directamente com o mundo da sua fantasia eram realizados à pressa, quase com aversão."
"Mais ici, solitude absolue et sécurité complète."
"Il fallait mourir de la plus effroyable des morts ! Et, chose étrange, il me vint à la pensée que, si mon corps fossilisé se retrouvait un jour, sa rencontre à trente lieues dans les entrailles de terre soulèverait de graves questions scientifiques !"
"Il fallait mourir de la plus effroyable des morts ! Et, chose étrange, il me vint à la pensée que, si mon corps fossilisé se retrouvait un jour, sa rencontre à trente lieues dans les entrailles de terre soulèverait de graves questions scientifiques !"
"O quarto era pequeno, mas eu e a minha bagagem éramos ainda mais pequenos."
"Disse «D. Ramón» para não dizer o meu nome, mas ao dizê-lo olhou para mim, e eu percebi o que aquele olhar queria dizer. Senti-me comprometido. Senti-me preso a um novo lugar, para onde aquele olhar acabava de me enviar."
"O que me chamou a atenção, o que me pôs imediatamente do seu lado, foi que antes de se levantar compôs a saia de maneira que o público não lhe visse as coxas, aquelas suas coxas esguias e compridas."
"Chegou o criado: trazia o café com leite numa bandeja, já servido, e, noutro prato, o bolo. D. Rosa não esperou que lho pusessem à frente: tirou-o ela própria da bandeja com aquelas suas mãos tão finas, de que não tinha descalçado as luvas. Partiu o bolo e pôs-se a comê-lo, molhado, sem deixar de falar, mas pedindo desculpa por falar com a boca cheia. Começou a explicar o que era para ela faltar-lhe uma peseta, que não era exactamente faltar uma peseta, mas sim faltar-lhe depois para certas contas e certas hipóteses que explicou detalhadamente. Depois, mudou de repente.
- Quem é que paga isto?"
"Disse «D. Ramón» para não dizer o meu nome, mas ao dizê-lo olhou para mim, e eu percebi o que aquele olhar queria dizer. Senti-me comprometido. Senti-me preso a um novo lugar, para onde aquele olhar acabava de me enviar."
"O que me chamou a atenção, o que me pôs imediatamente do seu lado, foi que antes de se levantar compôs a saia de maneira que o público não lhe visse as coxas, aquelas suas coxas esguias e compridas."
"Chegou o criado: trazia o café com leite numa bandeja, já servido, e, noutro prato, o bolo. D. Rosa não esperou que lho pusessem à frente: tirou-o ela própria da bandeja com aquelas suas mãos tão finas, de que não tinha descalçado as luvas. Partiu o bolo e pôs-se a comê-lo, molhado, sem deixar de falar, mas pedindo desculpa por falar com a boca cheia. Começou a explicar o que era para ela faltar-lhe uma peseta, que não era exactamente faltar uma peseta, mas sim faltar-lhe depois para certas contas e certas hipóteses que explicou detalhadamente. Depois, mudou de repente.
- Quem é que paga isto?"
"O coronel Bernardes não demorou muito
aquele gesto alevantado que, surpreendido por olhos longínquos ou distraídos, podia ser entendido como uma libação. Considerou o aspecto do líquido ao olhar e pousou, de novo, o copo, clap!, no redondo de vidro. Logo voltou a erguê-lo, num sobressalto brusco. Desta vez o copo não foi tão ao alto. Ficou-se suspenso, entre dois dedos, a vinte centímetros do tampo, enquanto a cara do coronel exprimia recolhimento. Tornou a pousá-lo, após uma pausa bem medida. Queria assegurar-se de que o copo não ficava pegado à mesa. Era uma mania antiga, que não o largava e que tinha a sua explicação.
Há muitos anos, em longínquas paragens e malsās, serenava ele na messe dum aquartelamento, em tranquila prática - também naquela Africa se falava desmedidamente -, quando zunitroaram umas morteiradas inimigas, num festival de estouros rebenta-tímpanos, que puseram tudo a oscilar, grau tal da escala de Richter, e foi o fim do mundo. O coronel Bernardes, por essa altura capitão, bem quis que o copo o acompanhasse ao abrigo. Era um copo excelente, com as armas portuguesas, mas dado à rebeldia. Recusou-se a cumprir ordens, preferiu ficar especado na mesa de pau, e resistiu aos repelões da mão ansiosa. O coronel teve pejo de ordenar aos outros oficiais, que já se esgueiravam, rápidos como os clarões: «Ó nosso alferes, ó nosso tenente, volte atrás, ajude-me aqui a desgrudar o copo, caraças!» De maneira que o copo lá ficou, e o coronel, enrodilhado no abrigo escuro, farto do troar das granadas e dos zumbidos dos estilhaços, concentrava-se na ânsia do conteúdo dele, que era duplo e mal tinha sido aflorado. Acabada a festa,
repelidos os empatas, a poder de obuses e rajadas de Breda, com as consequências que amanhã se veriam, o coronel foi encontrar o copo intacto, em cima da mesa, colado de todo, mas sem uma gota. Efeito de sucção das explosões, muito bebedoras do uísque da manutenção militar? O coronel, desde esse dia, nunca mais deixou de vigiar atentamente os copos de uísque e de assegurar-se de que eles se prontificavam a servir e não a trair. Não estavam autorizados, em especial, a colar-se à mobília. E ainda hoje cisma neste mistério: o sumir do uísque, naquela ocasião, teria sido obra da Física
ou de algum subalterno corréccio, insensível aos estilhaços, aos estrondos, às reverberações dos ares e guloso das bebidas alheias?"
"Mesmo que por acaso dormisse na pacatez de um convento de Franciscanos, nos arvoredos do Alto Minho, a ouvir as
vésperas suavemente rezadas lá longe na capela, ainda assim preferiria sentir debaixo da almofada a dureza bem oleada, e inimiga dos lençóis de linho, duma arma segura, pronta e fiel. Em Africa, nas campanhas, dormia de Kalash, com baioneta e tudo. Mas a Uzi, em paz, parecia-Ihe mais maneirinha, mais arma de senhoras, de dimensão razoável, compatível com a partilha do leito conjugal."
"O vento levou o celofane que envolvia a gravação do derradeiro êxito de Soraia Marina, o último grande enlevo dos povos lusitanos, adquirida sofregamente na estação de serviço mais próxima. E a música rompeu, estentórea, que mais alto o aparelho não dava. Após umas notas corridas de acordeão, a canção disco-de-platina apropriou-se da paisagem alentejana e subjugou-a.
<>. E a música era quase tão boa como a letra. Eleutério e Desidério trautearam baixinho,
com respeito, e deixaram-se escorregar, pelos bordos rampudos, para o fundo do buraco. Como todos os populares, destituídos de preconceitos intelectualóides, os dois trabalhadores nutriam um profundo rancor contra os ruídos naturais do campo e um ódio
figadal ao silencio propriamente dito."
" - Inibidote...
- O caraças. Deve ter mas é alguma no cartório. Pois esse Benjamim, nessa noite, andava muito bem bebido. O sarau era fraco, não havia muita conversa, os gajos
com quem ele se dava tinham ido todos para Cascais com umas putas, de maneira que ele amuou e assentou-se ali, na companhia dum manguela muito bizarro
nunca tirava o chapéu e armava sempre cenas de pancadaria (levava porrada que se fartava) quando os porteiros o queriam
convencer a descobrir-se. Punha-se aos urros e aos murros. Era uma espécie de chapéu andaluz, sebentíssimo, com uma fita amarela, de lacinho, ainda o conheceste?"
aquele gesto alevantado que, surpreendido por olhos longínquos ou distraídos, podia ser entendido como uma libação. Considerou o aspecto do líquido ao olhar e pousou, de novo, o copo, clap!, no redondo de vidro. Logo voltou a erguê-lo, num sobressalto brusco. Desta vez o copo não foi tão ao alto. Ficou-se suspenso, entre dois dedos, a vinte centímetros do tampo, enquanto a cara do coronel exprimia recolhimento. Tornou a pousá-lo, após uma pausa bem medida. Queria assegurar-se de que o copo não ficava pegado à mesa. Era uma mania antiga, que não o largava e que tinha a sua explicação.
Há muitos anos, em longínquas paragens e malsās, serenava ele na messe dum aquartelamento, em tranquila prática - também naquela Africa se falava desmedidamente -, quando zunitroaram umas morteiradas inimigas, num festival de estouros rebenta-tímpanos, que puseram tudo a oscilar, grau tal da escala de Richter, e foi o fim do mundo. O coronel Bernardes, por essa altura capitão, bem quis que o copo o acompanhasse ao abrigo. Era um copo excelente, com as armas portuguesas, mas dado à rebeldia. Recusou-se a cumprir ordens, preferiu ficar especado na mesa de pau, e resistiu aos repelões da mão ansiosa. O coronel teve pejo de ordenar aos outros oficiais, que já se esgueiravam, rápidos como os clarões: «Ó nosso alferes, ó nosso tenente, volte atrás, ajude-me aqui a desgrudar o copo, caraças!» De maneira que o copo lá ficou, e o coronel, enrodilhado no abrigo escuro, farto do troar das granadas e dos zumbidos dos estilhaços, concentrava-se na ânsia do conteúdo dele, que era duplo e mal tinha sido aflorado. Acabada a festa,
repelidos os empatas, a poder de obuses e rajadas de Breda, com as consequências que amanhã se veriam, o coronel foi encontrar o copo intacto, em cima da mesa, colado de todo, mas sem uma gota. Efeito de sucção das explosões, muito bebedoras do uísque da manutenção militar? O coronel, desde esse dia, nunca mais deixou de vigiar atentamente os copos de uísque e de assegurar-se de que eles se prontificavam a servir e não a trair. Não estavam autorizados, em especial, a colar-se à mobília. E ainda hoje cisma neste mistério: o sumir do uísque, naquela ocasião, teria sido obra da Física
ou de algum subalterno corréccio, insensível aos estilhaços, aos estrondos, às reverberações dos ares e guloso das bebidas alheias?"
"Mesmo que por acaso dormisse na pacatez de um convento de Franciscanos, nos arvoredos do Alto Minho, a ouvir as
vésperas suavemente rezadas lá longe na capela, ainda assim preferiria sentir debaixo da almofada a dureza bem oleada, e inimiga dos lençóis de linho, duma arma segura, pronta e fiel. Em Africa, nas campanhas, dormia de Kalash, com baioneta e tudo. Mas a Uzi, em paz, parecia-Ihe mais maneirinha, mais arma de senhoras, de dimensão razoável, compatível com a partilha do leito conjugal."
"O vento levou o celofane que envolvia a gravação do derradeiro êxito de Soraia Marina, o último grande enlevo dos povos lusitanos, adquirida sofregamente na estação de serviço mais próxima. E a música rompeu, estentórea, que mais alto o aparelho não dava. Após umas notas corridas de acordeão, a canção disco-de-platina apropriou-se da paisagem alentejana e subjugou-a.
<
com respeito, e deixaram-se escorregar, pelos bordos rampudos, para o fundo do buraco. Como todos os populares, destituídos de preconceitos intelectualóides, os dois trabalhadores nutriam um profundo rancor contra os ruídos naturais do campo e um ódio
figadal ao silencio propriamente dito."
" - Inibidote...
- O caraças. Deve ter mas é alguma no cartório. Pois esse Benjamim, nessa noite, andava muito bem bebido. O sarau era fraco, não havia muita conversa, os gajos
com quem ele se dava tinham ido todos para Cascais com umas putas, de maneira que ele amuou e assentou-se ali, na companhia dum manguela muito bizarro
nunca tirava o chapéu e armava sempre cenas de pancadaria (levava porrada que se fartava) quando os porteiros o queriam
convencer a descobrir-se. Punha-se aos urros e aos murros. Era uma espécie de chapéu andaluz, sebentíssimo, com uma fita amarela, de lacinho, ainda o conheceste?"
"A imensa luz que agora surgia por sobre os cumes dava à gigantesca muralha de rocha o aspecto de um castelo sombrio, de dimensões maiores que as dos que os homens constroem, uma fortaleza para anjos ou demónios, abandonada já pelas tropas defensoras."
"O tempo amainou. A tempestade passou. Já não sopra o vento. Ou talvez eu tenha aprendido a deslocar-me à velocidade do vento e por isso já não o sinta."
"E assim estive, a escutar o vento, com uma rã encerrada nas minhas mãos - aquele vento persistente, morno e obstinado por entre as árvores. E um cheiro ácido vindo dos pauis, nos bosques que circundam o lago. Sentia-a nitidamente, a tremer na sua gaiola.
E, de repente, urinou na minha mão.
Penso que esta é uma experiência que poucas pessoas tiveram.
A urina de rã é muito fria. Fiquei tão surpreendido, que abri a mão e deixei-a fugir. Ali fiquei, emocionado com o vento penetrando as copas das arvores, por cima de mim, e a mão fria de urina de rã."
"A doença dá origem a um interesse pelas suas pessoas que nunca lhes fora dispensado quando tinham saúde."
"Adoro contemplar estes ramos nus contra o céu cor de chumbo. Parecem letras de uma língua estranha, tentando dizer qualquer coisa."
"«Procuro um ouro que torne todo o ouro sem valor»".
"Para <«Para cúmulo da desgraça» significa, evidentemente, que uma nova contrariedade foi acrescentada à desgraça. A desgraça já é tanta, que corre o risco de transbordar
PARA CÚMULO DA DESGRAÇA-é daquelas coisas que a minha mãe estava sempre a dizer.
A minha tia Svea diria de uma maneira completamente diferente. Diria: É DE FAZER CHORAR AS PEDRAS.
SÓ FALTAVA MAIS ESTA - o meu pai.
RAIOS PARTAM ISTO- o tio Stig.
DIABOS LEVEM ESTA TRAMPA TODA
MALDITA A HORA
SÓ FALTA BATER NA AVÓ"
"A barca que tínhamos pedido emprestada metia água numa quantidade colossal, muito mais do que tínhamos pensado.
Fomo-nos revezando a despejá-la, como loucos, os braços doridos, até encalharmos, no último segundo, num banco de lodo já do outro lado. A água estava gelada e as minhas mãos roxas.
Embora fosse ainda muito pequeno, creio que aquele vazar de água ininterrupto se me apresentou como uma imagem de vida."
"No planeta número 3 do sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários. (...)
Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quiser dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz."
"O tempo amainou. A tempestade passou. Já não sopra o vento. Ou talvez eu tenha aprendido a deslocar-me à velocidade do vento e por isso já não o sinta."
"E assim estive, a escutar o vento, com uma rã encerrada nas minhas mãos - aquele vento persistente, morno e obstinado por entre as árvores. E um cheiro ácido vindo dos pauis, nos bosques que circundam o lago. Sentia-a nitidamente, a tremer na sua gaiola.
E, de repente, urinou na minha mão.
Penso que esta é uma experiência que poucas pessoas tiveram.
A urina de rã é muito fria. Fiquei tão surpreendido, que abri a mão e deixei-a fugir. Ali fiquei, emocionado com o vento penetrando as copas das arvores, por cima de mim, e a mão fria de urina de rã."
"A doença dá origem a um interesse pelas suas pessoas que nunca lhes fora dispensado quando tinham saúde."
"Adoro contemplar estes ramos nus contra o céu cor de chumbo. Parecem letras de uma língua estranha, tentando dizer qualquer coisa."
"«Procuro um ouro que torne todo o ouro sem valor»".
"Para <
PARA CÚMULO DA DESGRAÇA-é daquelas coisas que a minha mãe estava sempre a dizer.
A minha tia Svea diria de uma maneira completamente diferente. Diria: É DE FAZER CHORAR AS PEDRAS.
SÓ FALTAVA MAIS ESTA - o meu pai.
RAIOS PARTAM ISTO- o tio Stig.
DIABOS LEVEM ESTA TRAMPA TODA
MALDITA A HORA
SÓ FALTA BATER NA AVÓ"
"A barca que tínhamos pedido emprestada metia água numa quantidade colossal, muito mais do que tínhamos pensado.
Fomo-nos revezando a despejá-la, como loucos, os braços doridos, até encalharmos, no último segundo, num banco de lodo já do outro lado. A água estava gelada e as minhas mãos roxas.
Embora fosse ainda muito pequeno, creio que aquele vazar de água ininterrupto se me apresentou como uma imagem de vida."
"No planeta número 3 do sistema 13, em Aldebaran, existe uma civilização que se relaciona directamente com a realidade, sem símbolos intermediários. (...)
Nesta civilização a mentira é, evidentemente, uma total impossibilidade. Se se quer dizer «amo-te» a alguém, só há uma maneira, que é fazê-lo. Se se quiser dizer «não te amo», também só há uma maneira, que consiste em evitar fazê-lo. Se se for capaz."
Ao lado de Brodski, outros jovens não-conformistas pareciam ser pessoas de outra profissão. Brodski criou um modelo inédito de comportamento. Não vivia num estado proletário, mas num mosteiro do seu próprio espirito.
Não lutava contra o regime. Simplesmente não dava por ele. E mal sabia da sua existência.
Fiquei perplexo. Decidi vender a alma ao diabo, e qual foi o resultado? Foi oferecer a alma ao diabo.
Haverá algo mais vergonhoso?...
Certa vez, Bitov deu uma bofetada a Andrei Voznesenski.
Bitov foi sujeito a um juízo dos companheiros. Estava muma
situação mesmo má.
Ouçam-me», disse Bitov, «e hão-de compreender! Vou-lhes
contar como isto se passou! Quando o fizer, vao convencer-se de que agi correctamente. E então vão-me desculpar logo. Deixem-me desabafar. Foi assim. Entro no restaurante. Vejo o Andrei Voznesenski parado. E agora digam-me: podia evitar dar-lhe uma bofetada?...»
E aqui reinava, certamente o eterno acompanhante de um literato russo: o álcool. Bebia-se muito, até ao esquecimento total e às alucinações.
Conheço bem os nossos críticos inteligentes e talentosos. Durante onze meses do ano, dedicam-se aos problemas da alternância das consoantes em Rabindranath
Tagore. Depois recebem a tarefa de recensear um autor
contemporâneo. Ainda por cima, não completamente oficial. É então que os nossos críticos arregaçam as mangas.
Mobilizam todo o talento, todo o intelecto, toda a objectividade. Toda a sua exigência insatisfeita. E lançam-se desta altura sobre
a presa, como açores famintos.
Deram-lhes a ordem: podem atacar!
Permitiram-lhes mostrar todo o intelecto, todo o talento, toda a medida de objectividade segura.
Não lutava contra o regime. Simplesmente não dava por ele. E mal sabia da sua existência.
Fiquei perplexo. Decidi vender a alma ao diabo, e qual foi o resultado? Foi oferecer a alma ao diabo.
Haverá algo mais vergonhoso?...
Certa vez, Bitov deu uma bofetada a Andrei Voznesenski.
Bitov foi sujeito a um juízo dos companheiros. Estava muma
situação mesmo má.
Ouçam-me», disse Bitov, «e hão-de compreender! Vou-lhes
contar como isto se passou! Quando o fizer, vao convencer-se de que agi correctamente. E então vão-me desculpar logo. Deixem-me desabafar. Foi assim. Entro no restaurante. Vejo o Andrei Voznesenski parado. E agora digam-me: podia evitar dar-lhe uma bofetada?...»
E aqui reinava, certamente o eterno acompanhante de um literato russo: o álcool. Bebia-se muito, até ao esquecimento total e às alucinações.
Conheço bem os nossos críticos inteligentes e talentosos. Durante onze meses do ano, dedicam-se aos problemas da alternância das consoantes em Rabindranath
Tagore. Depois recebem a tarefa de recensear um autor
contemporâneo. Ainda por cima, não completamente oficial. É então que os nossos críticos arregaçam as mangas.
Mobilizam todo o talento, todo o intelecto, toda a objectividade. Toda a sua exigência insatisfeita. E lançam-se desta altura sobre
a presa, como açores famintos.
Deram-lhes a ordem: podem atacar!
Permitiram-lhes mostrar todo o intelecto, todo o talento, toda a medida de objectividade segura.