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mikesparrow's Reviews (220)
"«(...) e tinha uma única legenda sob a fotografia que lhe descrevi, a ampliação. A legenda dizia: Méfiez-vous des morceaus choisis».
(...)
«Que chatice», disse Christine, «mas nesse livro está tudo fora da moldura? É capaz de me dizer o que é que está dentro da moldura?»"
"«(...) eu, pelo contrário, olho para as outras mesas, estamos a conversar amavelmente, a mulher ri de vez em quando, vê-se pelos ombros, exactamente como você. A certa altura...». Calei-me e olhei para a esplanada, passando o olhar por todas as pessoas que estavam a jantar nas outras mesas. Christine partira o pauzinho de hortelã-pimenta, tinha-o ao canto da boca como um cigarro, com ar atento. «A certa altura?», perguntou. «O que é que acontece a certa altura?»
«A certa altura vejo-o. Está numa mesa ao fundo, do outro lado da esplanada. Está sentado na mesma posição que eu, estamos frente a frente. Ele também está com uma mulher, mas a mulher está de costas e não posso saber quem é. Talvez eu a conheça, ou pense conhecê-la, faz-me lembrar uma pessoa, talvez até duas pessoas, tanto podia ser uma como a outra. Mas assim de longe, à luz das velas, é difícil ter a certeza e, além disso, a esplanada é muito grande, exactamente como esta. Ele provavelmente diz à mulher para não se voltar, olha-me durante um bocado, sem se mexer, tem uma expressão satisfeita, quase sorridente. Talvez também ele julgue que reconhecer a mulher que está comigo, faz-lhe lembrar uma pessoa, ou até duas pessoas, tanto podia ser uma como a outra.»
(...)
«Que chatice», disse Christine, «mas nesse livro está tudo fora da moldura? É capaz de me dizer o que é que está dentro da moldura?»"
"«(...) eu, pelo contrário, olho para as outras mesas, estamos a conversar amavelmente, a mulher ri de vez em quando, vê-se pelos ombros, exactamente como você. A certa altura...». Calei-me e olhei para a esplanada, passando o olhar por todas as pessoas que estavam a jantar nas outras mesas. Christine partira o pauzinho de hortelã-pimenta, tinha-o ao canto da boca como um cigarro, com ar atento. «A certa altura?», perguntou. «O que é que acontece a certa altura?»
«A certa altura vejo-o. Está numa mesa ao fundo, do outro lado da esplanada. Está sentado na mesma posição que eu, estamos frente a frente. Ele também está com uma mulher, mas a mulher está de costas e não posso saber quem é. Talvez eu a conheça, ou pense conhecê-la, faz-me lembrar uma pessoa, talvez até duas pessoas, tanto podia ser uma como a outra. Mas assim de longe, à luz das velas, é difícil ter a certeza e, além disso, a esplanada é muito grande, exactamente como esta. Ele provavelmente diz à mulher para não se voltar, olha-me durante um bocado, sem se mexer, tem uma expressão satisfeita, quase sorridente. Talvez também ele julgue que reconhecer a mulher que está comigo, faz-lhe lembrar uma pessoa, ou até duas pessoas, tanto podia ser uma como a outra.»
Os filósofos políticos têm feito notar muitas vezes que em tempo de guerra o cidadão, do sexo masculino pelo menos, perde um dos seus direitos mais elementares, o de viver, e isso desde a Revolução Francesa e da invenção da conscrição, princípio hoje universalmente admitido ou quase. Mas raramente notaram que o mesmo cidadão perde ao mesmo tempo um outro direito, igualmente elementar e talvez ainda mais vital, no que diz respeito à ideia que faz de si próprio enquanto homem civilizado: o direito de não matar. Ninguém nos pergunta a nossa opinião. O homem que fica de pé à beira da vala comum, na maior parte dos casos, não quis estar ali mais do que aquele que está deitado, morto ou nu bundo, no fundo da mesma vala. Objectar-me-ão que matar outro militar em combate não é a mesma coisa que matar um civil desarmado; as leis da guerra permitem uma coisa mas não a outra. A moral comum decide do mesmo modo.
Uma vez mais., sejamos claros: não procuro dizer que não sou culpado deste ou daquele facto. Sou culpado, o leitor não, muito bem. Mas o leitor deveria apesar de tudo ser capaz de dizer para consigo que teria feito também aquilo que eu fiz. Talvez com menos zelo, mas talvez também com menos desespero, mas seja como for de uma maneira ou de outra. Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça; e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não a fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.
Podia distinguir agora três temperamentos entre os meus colegas. Havia em primeiro lugar os que, ainda que procurassem escondê-lo matavam com volúpia; já falei deles, eram criminosos, que se tinham des¬coberto a si próprios graças à guerra. Depois havia aqueles a quem repug¬nava matar e que o faziam por dever, superando a sua repulsa, por amor da ordem. Havia enfim os que consideravam os judeus como animais e os matavam como um magarefe degola uma vaca, tarefa alegre ou árdua, conforme os humores ou a disposição. Kurt Hans pertencia claramente a esta última categoria, para ele, tudo o que contava era a precisão do gesto, a eficácia, o rendimento. Todas as noites, procedia à recapitulação meticulosa dos seus totais. Mas quanto a mim, que dizer então? Pelo meu lado, não me identificava com nenhum dos três tipos, mas já nada sabia ao certo, e se insistissem um pouco comigo, teria dificuldade em articular uma resposta de boa
«É difícil de compreender», acrescentou Hennicke. «Se realmente os judeus dominam o Partido Comunista, deveriam esforçar-se mais por salvar os seus correligionários.» - «Eles são espertos», sugeriu o Dr. von Scheven, outro dos oficiais do grupo. «Não querem dar o flanco à nossa propaganda favorecendo os deles demasiado abertamente. 0 Estaline tem também de ter em conta o nacionalismo grão-russo. Para conservarem o poder, sacrificam os primos pobres.» - «Você tem com certeza razão», aprovou Hennicke. Eu sorria interiormente, mas com amargura: como na Idade Média, raciocinávamos por meio de silogismos, que se provavam uns aos outros. E essas provas levavam-nos por um caminho sem regresso.
Cheguei à conclusão de que o guarda SS não se torna violento ou sádico por pensar que o detido não é um ser humano; pelo contrário, a raiva dele aumenta e transforma-se em sadismo quando se dá conta de que o detido, longe de ser um sub-homem como lhe ensinaram, é justamente, bem vistas as coisas, um homem, como ele no fundo, e é esta resistência, não sei se está a ver, que o guarda experimenta como insuportável, esta persistência muda do outro, e portanto o guarda, quando espanca o detido, está a tentar fazer desaparecer essa humanidade que é comum aos dois. Bem entendido, a coisa não funciona: quanto mais o guarda bate, mais obrigado é a comprovar que o detido se recusa a reconhecer-se como não-humano. Acaba por não lhe restar outra solução que não seja matá-lo, o que não passa também da constatação de um fracasso definitivo.» Wirths calou-se. Continuava a olhar nela janela.
«(...) poderá concordar comigo pelo menos num ponto: ainda que a análise das categorias em jogo seja diferente, as nossas ideologias têm em comum o seguinte aspecto fundamental, o de serem as duas essencialmente deterministas; determinismo racial para vocês, determinismo económico para nós, mas sempre determinismo em todo o caso. Você e eu acreditamos que o homem não escolhe livremente o seu destino, mas que ele lhe é imposto pela natureza ou pela história. E daí tiramos os dois a conclusão de que existem inimigos objectivos, que certas categorias de seres humanos podem e devem legitimamente ser eliminados, não pelo que fizeram ou sequer pensaram, mas pelo que são. A este respeito, só diferimos pela definição das categorias; para vocês, os judeus, os ciganos, os polacos, e ainda segundo creio saberes doentes mentais; para nós, os kulaques, os burgueses, os desviacionistas do Partido. No fundo, é a mesma coisa; recusamos ambos o homo economicus dos capitalistas, o homem egoísta, individualista, prisioneiro da sua ilusão da liberdade, em benefício de um homo faber. Not a self-made man but a made man, como poderíamos dizer em inglês, ou antes, um homem a fazer porque o homem comunista está ainda por construir, por formar através da educação, do mesmo modo que o vosso nacional-socialista perfeito. E este homem a fazer justifica a liquidação impiedosa de tudo o que é ineducável, e justifica portanto a NKVD e a Gestapo, jardineiros do corpo social, que arrancam as ervas daninhas e forçam os homens a seguir os seus tutores.» (...)
«E no seu entender, em que é que a ideologia bolchevique é superior à do nacional-socialismo?» - «No facto de querer o bem de toda a humanidade, ao passo que a vossa é egoísta, quer exclusivamente o bem dos alemães. Como não sou alemão, é-me impossível aderir a ela, ainda que o quisesse.» - «Sim, mas se tivesse nascido burguês, como eu, ser-lhe-ia impossível tornar-se bolchevique: continuaria a ser, quaisquer que fossem as suas convicções íntimas, um inimigo objectivo.» - «É verdade, mas isso dever-se-ia à educação. Um filho de burguês, um neto de burguês, educado desde a nascença num país socialista, será um verdadeiro, um bom comunista, acima de toda a suspeita. Quando a sociedade sem classes for uma realidade, todas as classes se dissolverão no Comunismo. Em teoria, podemos tornar isto extensivo ao mundo inteiro, o que não é o caso do nacional-socialismo.» - «Em teoria, talvez. Mas não pode prová-lo, e na realidade vocês cometem crimes atrozes em nome dessa utopia.» - «Não lhe vou responder que os vossos crimes são piores. Direi simplesmente que se não podemos provar a alguém que se recusa a acreditar na verdade do Marxismo o bom fundamento das nossas esperanças, podemos e vamos provar-vos concretamente a inanidade das vossas. O vosso racismo biológico postula que as raças são desiguais entre elas, que algumas são mais fortes e mais válidas do que outras, e que a mais forte e a mais válida de todas é a raça alemã. Mas quando Berlim se parecer com esta cidade» apontou com o dedo para o tecto «e quando os nossos bravos soldados acamparem no Vosso Unter den Linden, serão pelo menos obrigados, se quiserem conservar a vossa fé racista, a reconhecer que a raça eslava é mais forte do que a raça alemã.»
Voltei a recostar-me no cadeirão e bebi o conhaque de Hohenegg. Mantinham os dois uma atitude bastante curiosa: com efeito, como Hohenegg me explicam, Weirowski, na faculdade, era mais antigo do que ele; mas enquanto Oberst Hohenegg era de patente superior à de Weinrowski, que tinha na SS a categoria de Sturmbannfuhrer da reserva, o equivalente a um major. Pareciam não saber qual dos dois gozava de precedência sobre o outro, e por conseguinte haviam adoptado uma atitude deferente, com muitos «Por favor», «Não, não, evidentemente, tem razão», «A sua experiência...», «A sua prática...», o que acabava por ser razoavelmente cómico.
(...)
«Não seria possível modificar as repartições?», perguntou por fim Hohenegg. -«Quer dizer?» - «Pois bem, sem aumento do orçamento total, favorecer um pouco mais os detidos que trabalham, e um pouco menos os que não trabalham.» - «Em princípio, caro doutor, não há detidos que não trabalhem. Há somente os doentes: mas se os alimentarmos ainda menos do que actualmente, não terão qualquer possibilidade de recuperar e de voltar a ser aptos. Nesse caso, mais valeria pura e simplesmente não os alimentar; mas então a mortalidade voltará a aumentar.» - «Sim, mas quero eu dizer, as mulheres, as crianças, vocês ficam com elas nalgum lado, não? E portanto são também alimentadas, suponho.» Olhei para ele sem responder. Weinrowski continuava igualmente mudo. Por fim disse: «Não, doutor. As mulheres e os velhos e as crianças, não ficamos com eles.» Hohenegg arregalou os olhos e fixou-os em mim sem responder, como se quisesse que eu confirmasse que dissera efectivamente o que dissera. Abanei a cabeça. Ele acabou por compreender. Suspirou longamentee coçou a parte de trás da nuca: «Pois bem...» Weinrowski e eu continuávamos a manter o silêncio. «Ah, sim... sim. Ah, essa é de mais, essa.» Respirou com força: «Bem. Estou a ver como é. Imagino que afinal de contas, sobretudo depois de Estalinegrado, não há muitas outras escolhas possíveis.» - «Não, doutor, realmente não.» - «Apesar de tudo, é forte. Todos?» - «Todos os que não podem trabalhar.» - «Pois bem...» Recompôs-se: «No fundo, é normal. Não há razão para tratarmos os nossos inimigos melhor do que os nossos próprios soldados. Depois do que eu vi em Estalinegrado... Até mesmo estas rações são um luxo. Os nossos homens aguentavam-se com muito menos. E depois, aos que sobreviveram, o que é que lhes darão para comer, agora? Os nossos camaradas, na Sibéria, que rações recebem? Não, não, vocês têm razão.» Fitou-me com um ar pensativo: «O que não impede que seja uma Schweinerei, um verdadeiro nojo. Mas apesar de tudo, vocês têm razão.»
«Essa filosofia de veterinários, como dizia Herder, roubou todos os seus conceitos à linguística, a única das ciências do homem até hoje que dispõe de uma base teórica cientificamente validada. Está a compreender», descera de tom e falava rápida e furiosamente, «está a compreender pelo menos o que é uma teoria científica? Uma teoria não é um facto: é uma ferramenta que permite emitir predições e engendrar novas hipóteses. Diz-se de uma teoria que é boa, em primeiro lugar se for relativamente simples e, a seguir, se permitir fazer predições verificáveis. (...) O procedimento resulta e é demonstrável. Trata-se, portanto, de uma boa teoria, embora constantemente em curso de elaboração, de correcção e de aperfeiçoamento. A antropologia racial, por comparação, não tem qualquer teoria. Postula as raças, sem as poder definir, depois determina hierarquias, sem um mínimo de critérios. Todas as tentativas de definição biológica das raças falharam. (…) Tudo isto é a tal ponto verdade que aqueles que redigiram as nossas famosas leis raciais foram obrigados a tomar por critério a religião dos avós! Postulou-se que os judeus do século passado eram racialmente puros, mas é absolutamente arbitrário, até você deve poder vê-lo. (...) E se são critérios como os deles que vos servem para decidir da vida e da morte das pessoas, fariam melhor em disparar ao acaso sobre a multidão, o resultado seria o mesmo.»
A voz fazia-se-lhe gemebunda. «Porra, hão-de foder-nos mesmo se ganharmos. Porque, ouça-me, Aue, ouça-me bem» -sussurrava quase, agora, a voz saía-lhe rouca «um dia isto há-de vir à tona. Tudo. Há gente de mais que sabe, testemunhas de mais. E quando isto vier à tona, quer tenhamos vencido ou perdido a guerra, vai dar que falar, vai ser um escândalo. Vão ter de rolar cabeças. E hão-de ser as nossas cabeças que vão ser servidas à multidão enquanto todos os prussiano-marranos como o von Manstein, todos os von Rundstedt e os von Brauchitsch e os von Kluge hão-de voltar às suas von mansões confortáveis e hão-de escrever as suas von memórias, trocando pancadinhas nas costas uns dos outros por terem sido von soldados tão decentes e honrados. E nós havemos de ir para o galheiro. (...)»
Aproximei-me dele e sacudi-o, mas ele continuava a rir e a disparar ali diante de mim, arranquei-lhe a metralhadora e esbofeteei-o, a seguir mandei-o ir ter com o grupo dos homens que reabasteciam os carregadores; Grafhorst mandou-me outro homem para o substituir e eu lancei-lhe a metralhadora gritando: «E faz-me isso como deve ser, entendido?! !» Perto de mim, outro grupo estava a ser trazido: o meu olhar cruzou-se com o de uma bela rapariga, quase nua, mas muito elegante, calma, com os olhos cheios de uma tristeza imensa. Afastei-me. Quando voltei estava ainda viva, semivirada sobre o dorso, uma bala saíra-lhe por debaixo do seio e ela arquejava, petrificada, os belos lábios tremiam-lhe e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os seus grandes olhos surpresos, incrédulos, olhos de ave ferida, e esse olhar cravou-se em mim, rasgou-me o ventre e deixou escorrer dele um jorro de serradura, eu não passava de uma simples boneca e não sentia nada, e ao mesmo tempo queria de todo o coração curvar-me e limpar-lhe a terra e o suor misturados na sua fronte, acariciar-lhe a face e dizer-lhe que já estava melhor, que tudo correria da melhor maneira, mas em vez disso disparei-lhe convulsivamente uma bala na cabeça, o que bem vistas as coisas vinha a dar no mesmo, para ela em todo o caso não para mim, porque a mim à ideia daquele desperdício humano insensato invadia-me uma raiva imensa, desmedida, continuava a disparar sobre ela e a cabeça rebentara-lhe como um fruto, e então o meu braço soltou-se de mim e partiu só ele pela ravina, disparando para um lado e para o outro, eu corria atrás dele, fazia-lhe sinal com o outro braço dizendo-lhe que esperasse por mim, mas ele não queria, ria-se de mim e disparava sobre os feridos sozinho, sem mim, que finalmente, esgotado, parei e comecei a chorar. Agora, pensava, acabou-se, o meu braço nunca mais voltará, mas para minha grande surpresa ali estava ele de novo, no seu lugar, solidamente preso ao meu ombro, e Hafner aproximava-se de mim e dizia-me: «Está bom, Obersturmfuhrer. Eu substituo-o.»
Uma vez mais., sejamos claros: não procuro dizer que não sou culpado deste ou daquele facto. Sou culpado, o leitor não, muito bem. Mas o leitor deveria apesar de tudo ser capaz de dizer para consigo que teria feito também aquilo que eu fiz. Talvez com menos zelo, mas talvez também com menos desespero, mas seja como for de uma maneira ou de outra. Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça; e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não a fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres, os vossos filhos, mas em que ninguém aparece também para vos dizer que matem as mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.
Podia distinguir agora três temperamentos entre os meus colegas. Havia em primeiro lugar os que, ainda que procurassem escondê-lo matavam com volúpia; já falei deles, eram criminosos, que se tinham des¬coberto a si próprios graças à guerra. Depois havia aqueles a quem repug¬nava matar e que o faziam por dever, superando a sua repulsa, por amor da ordem. Havia enfim os que consideravam os judeus como animais e os matavam como um magarefe degola uma vaca, tarefa alegre ou árdua, conforme os humores ou a disposição. Kurt Hans pertencia claramente a esta última categoria, para ele, tudo o que contava era a precisão do gesto, a eficácia, o rendimento. Todas as noites, procedia à recapitulação meticulosa dos seus totais. Mas quanto a mim, que dizer então? Pelo meu lado, não me identificava com nenhum dos três tipos, mas já nada sabia ao certo, e se insistissem um pouco comigo, teria dificuldade em articular uma resposta de boa
«É difícil de compreender», acrescentou Hennicke. «Se realmente os judeus dominam o Partido Comunista, deveriam esforçar-se mais por salvar os seus correligionários.» - «Eles são espertos», sugeriu o Dr. von Scheven, outro dos oficiais do grupo. «Não querem dar o flanco à nossa propaganda favorecendo os deles demasiado abertamente. 0 Estaline tem também de ter em conta o nacionalismo grão-russo. Para conservarem o poder, sacrificam os primos pobres.» - «Você tem com certeza razão», aprovou Hennicke. Eu sorria interiormente, mas com amargura: como na Idade Média, raciocinávamos por meio de silogismos, que se provavam uns aos outros. E essas provas levavam-nos por um caminho sem regresso.
Cheguei à conclusão de que o guarda SS não se torna violento ou sádico por pensar que o detido não é um ser humano; pelo contrário, a raiva dele aumenta e transforma-se em sadismo quando se dá conta de que o detido, longe de ser um sub-homem como lhe ensinaram, é justamente, bem vistas as coisas, um homem, como ele no fundo, e é esta resistência, não sei se está a ver, que o guarda experimenta como insuportável, esta persistência muda do outro, e portanto o guarda, quando espanca o detido, está a tentar fazer desaparecer essa humanidade que é comum aos dois. Bem entendido, a coisa não funciona: quanto mais o guarda bate, mais obrigado é a comprovar que o detido se recusa a reconhecer-se como não-humano. Acaba por não lhe restar outra solução que não seja matá-lo, o que não passa também da constatação de um fracasso definitivo.» Wirths calou-se. Continuava a olhar nela janela.
«(...) poderá concordar comigo pelo menos num ponto: ainda que a análise das categorias em jogo seja diferente, as nossas ideologias têm em comum o seguinte aspecto fundamental, o de serem as duas essencialmente deterministas; determinismo racial para vocês, determinismo económico para nós, mas sempre determinismo em todo o caso. Você e eu acreditamos que o homem não escolhe livremente o seu destino, mas que ele lhe é imposto pela natureza ou pela história. E daí tiramos os dois a conclusão de que existem inimigos objectivos, que certas categorias de seres humanos podem e devem legitimamente ser eliminados, não pelo que fizeram ou sequer pensaram, mas pelo que são. A este respeito, só diferimos pela definição das categorias; para vocês, os judeus, os ciganos, os polacos, e ainda segundo creio saberes doentes mentais; para nós, os kulaques, os burgueses, os desviacionistas do Partido. No fundo, é a mesma coisa; recusamos ambos o homo economicus dos capitalistas, o homem egoísta, individualista, prisioneiro da sua ilusão da liberdade, em benefício de um homo faber. Not a self-made man but a made man, como poderíamos dizer em inglês, ou antes, um homem a fazer porque o homem comunista está ainda por construir, por formar através da educação, do mesmo modo que o vosso nacional-socialista perfeito. E este homem a fazer justifica a liquidação impiedosa de tudo o que é ineducável, e justifica portanto a NKVD e a Gestapo, jardineiros do corpo social, que arrancam as ervas daninhas e forçam os homens a seguir os seus tutores.» (...)
«E no seu entender, em que é que a ideologia bolchevique é superior à do nacional-socialismo?» - «No facto de querer o bem de toda a humanidade, ao passo que a vossa é egoísta, quer exclusivamente o bem dos alemães. Como não sou alemão, é-me impossível aderir a ela, ainda que o quisesse.» - «Sim, mas se tivesse nascido burguês, como eu, ser-lhe-ia impossível tornar-se bolchevique: continuaria a ser, quaisquer que fossem as suas convicções íntimas, um inimigo objectivo.» - «É verdade, mas isso dever-se-ia à educação. Um filho de burguês, um neto de burguês, educado desde a nascença num país socialista, será um verdadeiro, um bom comunista, acima de toda a suspeita. Quando a sociedade sem classes for uma realidade, todas as classes se dissolverão no Comunismo. Em teoria, podemos tornar isto extensivo ao mundo inteiro, o que não é o caso do nacional-socialismo.» - «Em teoria, talvez. Mas não pode prová-lo, e na realidade vocês cometem crimes atrozes em nome dessa utopia.» - «Não lhe vou responder que os vossos crimes são piores. Direi simplesmente que se não podemos provar a alguém que se recusa a acreditar na verdade do Marxismo o bom fundamento das nossas esperanças, podemos e vamos provar-vos concretamente a inanidade das vossas. O vosso racismo biológico postula que as raças são desiguais entre elas, que algumas são mais fortes e mais válidas do que outras, e que a mais forte e a mais válida de todas é a raça alemã. Mas quando Berlim se parecer com esta cidade» apontou com o dedo para o tecto «e quando os nossos bravos soldados acamparem no Vosso Unter den Linden, serão pelo menos obrigados, se quiserem conservar a vossa fé racista, a reconhecer que a raça eslava é mais forte do que a raça alemã.»
Voltei a recostar-me no cadeirão e bebi o conhaque de Hohenegg. Mantinham os dois uma atitude bastante curiosa: com efeito, como Hohenegg me explicam, Weirowski, na faculdade, era mais antigo do que ele; mas enquanto Oberst Hohenegg era de patente superior à de Weinrowski, que tinha na SS a categoria de Sturmbannfuhrer da reserva, o equivalente a um major. Pareciam não saber qual dos dois gozava de precedência sobre o outro, e por conseguinte haviam adoptado uma atitude deferente, com muitos «Por favor», «Não, não, evidentemente, tem razão», «A sua experiência...», «A sua prática...», o que acabava por ser razoavelmente cómico.
(...)
«Não seria possível modificar as repartições?», perguntou por fim Hohenegg. -«Quer dizer?» - «Pois bem, sem aumento do orçamento total, favorecer um pouco mais os detidos que trabalham, e um pouco menos os que não trabalham.» - «Em princípio, caro doutor, não há detidos que não trabalhem. Há somente os doentes: mas se os alimentarmos ainda menos do que actualmente, não terão qualquer possibilidade de recuperar e de voltar a ser aptos. Nesse caso, mais valeria pura e simplesmente não os alimentar; mas então a mortalidade voltará a aumentar.» - «Sim, mas quero eu dizer, as mulheres, as crianças, vocês ficam com elas nalgum lado, não? E portanto são também alimentadas, suponho.» Olhei para ele sem responder. Weinrowski continuava igualmente mudo. Por fim disse: «Não, doutor. As mulheres e os velhos e as crianças, não ficamos com eles.» Hohenegg arregalou os olhos e fixou-os em mim sem responder, como se quisesse que eu confirmasse que dissera efectivamente o que dissera. Abanei a cabeça. Ele acabou por compreender. Suspirou longamentee coçou a parte de trás da nuca: «Pois bem...» Weinrowski e eu continuávamos a manter o silêncio. «Ah, sim... sim. Ah, essa é de mais, essa.» Respirou com força: «Bem. Estou a ver como é. Imagino que afinal de contas, sobretudo depois de Estalinegrado, não há muitas outras escolhas possíveis.» - «Não, doutor, realmente não.» - «Apesar de tudo, é forte. Todos?» - «Todos os que não podem trabalhar.» - «Pois bem...» Recompôs-se: «No fundo, é normal. Não há razão para tratarmos os nossos inimigos melhor do que os nossos próprios soldados. Depois do que eu vi em Estalinegrado... Até mesmo estas rações são um luxo. Os nossos homens aguentavam-se com muito menos. E depois, aos que sobreviveram, o que é que lhes darão para comer, agora? Os nossos camaradas, na Sibéria, que rações recebem? Não, não, vocês têm razão.» Fitou-me com um ar pensativo: «O que não impede que seja uma Schweinerei, um verdadeiro nojo. Mas apesar de tudo, vocês têm razão.»
«Essa filosofia de veterinários, como dizia Herder, roubou todos os seus conceitos à linguística, a única das ciências do homem até hoje que dispõe de uma base teórica cientificamente validada. Está a compreender», descera de tom e falava rápida e furiosamente, «está a compreender pelo menos o que é uma teoria científica? Uma teoria não é um facto: é uma ferramenta que permite emitir predições e engendrar novas hipóteses. Diz-se de uma teoria que é boa, em primeiro lugar se for relativamente simples e, a seguir, se permitir fazer predições verificáveis. (...) O procedimento resulta e é demonstrável. Trata-se, portanto, de uma boa teoria, embora constantemente em curso de elaboração, de correcção e de aperfeiçoamento. A antropologia racial, por comparação, não tem qualquer teoria. Postula as raças, sem as poder definir, depois determina hierarquias, sem um mínimo de critérios. Todas as tentativas de definição biológica das raças falharam. (…) Tudo isto é a tal ponto verdade que aqueles que redigiram as nossas famosas leis raciais foram obrigados a tomar por critério a religião dos avós! Postulou-se que os judeus do século passado eram racialmente puros, mas é absolutamente arbitrário, até você deve poder vê-lo. (...) E se são critérios como os deles que vos servem para decidir da vida e da morte das pessoas, fariam melhor em disparar ao acaso sobre a multidão, o resultado seria o mesmo.»
A voz fazia-se-lhe gemebunda. «Porra, hão-de foder-nos mesmo se ganharmos. Porque, ouça-me, Aue, ouça-me bem» -sussurrava quase, agora, a voz saía-lhe rouca «um dia isto há-de vir à tona. Tudo. Há gente de mais que sabe, testemunhas de mais. E quando isto vier à tona, quer tenhamos vencido ou perdido a guerra, vai dar que falar, vai ser um escândalo. Vão ter de rolar cabeças. E hão-de ser as nossas cabeças que vão ser servidas à multidão enquanto todos os prussiano-marranos como o von Manstein, todos os von Rundstedt e os von Brauchitsch e os von Kluge hão-de voltar às suas von mansões confortáveis e hão-de escrever as suas von memórias, trocando pancadinhas nas costas uns dos outros por terem sido von soldados tão decentes e honrados. E nós havemos de ir para o galheiro. (...)»
Aproximei-me dele e sacudi-o, mas ele continuava a rir e a disparar ali diante de mim, arranquei-lhe a metralhadora e esbofeteei-o, a seguir mandei-o ir ter com o grupo dos homens que reabasteciam os carregadores; Grafhorst mandou-me outro homem para o substituir e eu lancei-lhe a metralhadora gritando: «E faz-me isso como deve ser, entendido?! !» Perto de mim, outro grupo estava a ser trazido: o meu olhar cruzou-se com o de uma bela rapariga, quase nua, mas muito elegante, calma, com os olhos cheios de uma tristeza imensa. Afastei-me. Quando voltei estava ainda viva, semivirada sobre o dorso, uma bala saíra-lhe por debaixo do seio e ela arquejava, petrificada, os belos lábios tremiam-lhe e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os seus grandes olhos surpresos, incrédulos, olhos de ave ferida, e esse olhar cravou-se em mim, rasgou-me o ventre e deixou escorrer dele um jorro de serradura, eu não passava de uma simples boneca e não sentia nada, e ao mesmo tempo queria de todo o coração curvar-me e limpar-lhe a terra e o suor misturados na sua fronte, acariciar-lhe a face e dizer-lhe que já estava melhor, que tudo correria da melhor maneira, mas em vez disso disparei-lhe convulsivamente uma bala na cabeça, o que bem vistas as coisas vinha a dar no mesmo, para ela em todo o caso não para mim, porque a mim à ideia daquele desperdício humano insensato invadia-me uma raiva imensa, desmedida, continuava a disparar sobre ela e a cabeça rebentara-lhe como um fruto, e então o meu braço soltou-se de mim e partiu só ele pela ravina, disparando para um lado e para o outro, eu corria atrás dele, fazia-lhe sinal com o outro braço dizendo-lhe que esperasse por mim, mas ele não queria, ria-se de mim e disparava sobre os feridos sozinho, sem mim, que finalmente, esgotado, parei e comecei a chorar. Agora, pensava, acabou-se, o meu braço nunca mais voltará, mas para minha grande surpresa ali estava ele de novo, no seu lugar, solidamente preso ao meu ombro, e Hafner aproximava-se de mim e dizia-me: «Está bom, Obersturmfuhrer. Eu substituo-o.»
Ficções: de humor
Enrique Jardiel Poncela, Marquis de Sade, O. Henry, Mario Benedetti, Luísa Costa Gomes, Woody Allen, Raymond Queneau, James Thurber, Boris Vian, Alexandre O'Neill, Dezső Kosztolányi, P.G. Wodehouse, Giovanni Boccaccio, Saki, Jerome K. Jerome, Fyodor Dostoevsky, Ring Lardner
"(...) Leocadia entrou no café levantando ao passar, por obra de sua acaba formusura, uma onda de requebros e de ressuspiros masculinos.
Leocadia chegou ao pé de mim, estendeu-me as mãos com o sorriso mais celestial que olhos humanos já viram, e deixou-se cair no divã com um chique indiscutível.
Pediu-me não me lembo o quê e falou-me dos nossos amores epistolares, de quão feliz pensava ser, como me amava já...
- Também te amo com toda minh'alma - disse-lhe, porque verdadeiramente assim era, pois até aí não tinha topado com mulher alguma que tivesse menos defeitos que ela.
- Que dizes? - perguntou.
- Que também te amo com toda a alma.
- Quê?
Vi a horrível verdade. Locadia era surda.
- Quê?
- Que também eu te amo com toda a minha alma! - repeti, gritando.
E arrependi-me em seguida, porque se viraram dez fregueses para me olharem, evidentemente incomodados.
- A sério que me amas? - perguntou, com essa maçadoria própria dos apaixonados e dos agentes de seguros de vida.
- Jura-mo!
- Juro!
- Quê?
- Juro!
- Diz lá que juras que me amas...
- Juro que te amo! - vociferei.
Olharam-me com ódio vinte freguese.
- Que idiota! - sussurrou um deles - Isto é que se chama amar de viva voz.
- Então - seguiu a minha amada, alheia à tormenta -, não te arrependes de que eu tenha vindo a Madrid?
- De modo nenhum! - gritei, decidido a enfrentar tudo, porque me pareceu estúpido sacrificar o meu amor à opinião de uns senhores que falavam do Governo.
- E agrado-te?
- Muito!
- Nas tuas cartas dizias que os meus olhos eram muito melancólicos. Ainda achas?
- Sim! - gritei, como se estivesse a dar uma conferência na Praça de Touros. - Os teus olhos são muito melancólicos!
- E as minhas pestanas?
- As tuas pestanas, reviradíssimas!
- E a minha figura?
- Muito elegante!
Todo o café nos olhava. Todas as conversas se calavam, só me ouviam a mim. Nas montras começaram a ver-se transeuntes curiosos que contemplavam a cena.
- O meu amor faz-te feliz?
- Muito feliz! Felicíssimo!
- E quando puderes abraçar-me?
- Quando puder abraçar-te hei-de crer que estreito ao coração todas as rosas de todas as roseiras do mundo!
- E quando me beijares?...
- Quando te beijar hei-de crer que encontrei um manancial onde fluirão confundidas as águas mais puras e doces de todos os mananciais!
Não sei quanto tempo continuei, afrontando os rigores da opinião alheia. Sei que, por fim, aproximou-se um guarda.
- Faça o favor de não escandalizar. (...)"
Leocadia chegou ao pé de mim, estendeu-me as mãos com o sorriso mais celestial que olhos humanos já viram, e deixou-se cair no divã com um chique indiscutível.
Pediu-me não me lembo o quê e falou-me dos nossos amores epistolares, de quão feliz pensava ser, como me amava já...
- Também te amo com toda minh'alma - disse-lhe, porque verdadeiramente assim era, pois até aí não tinha topado com mulher alguma que tivesse menos defeitos que ela.
- Que dizes? - perguntou.
- Que também te amo com toda a alma.
- Quê?
Vi a horrível verdade. Locadia era surda.
- Quê?
- Que também eu te amo com toda a minha alma! - repeti, gritando.
E arrependi-me em seguida, porque se viraram dez fregueses para me olharem, evidentemente incomodados.
- A sério que me amas? - perguntou, com essa maçadoria própria dos apaixonados e dos agentes de seguros de vida.
- Jura-mo!
- Juro!
- Quê?
- Juro!
- Diz lá que juras que me amas...
- Juro que te amo! - vociferei.
Olharam-me com ódio vinte freguese.
- Que idiota! - sussurrou um deles - Isto é que se chama amar de viva voz.
- Então - seguiu a minha amada, alheia à tormenta -, não te arrependes de que eu tenha vindo a Madrid?
- De modo nenhum! - gritei, decidido a enfrentar tudo, porque me pareceu estúpido sacrificar o meu amor à opinião de uns senhores que falavam do Governo.
- E agrado-te?
- Muito!
- Nas tuas cartas dizias que os meus olhos eram muito melancólicos. Ainda achas?
- Sim! - gritei, como se estivesse a dar uma conferência na Praça de Touros. - Os teus olhos são muito melancólicos!
- E as minhas pestanas?
- As tuas pestanas, reviradíssimas!
- E a minha figura?
- Muito elegante!
Todo o café nos olhava. Todas as conversas se calavam, só me ouviam a mim. Nas montras começaram a ver-se transeuntes curiosos que contemplavam a cena.
- O meu amor faz-te feliz?
- Muito feliz! Felicíssimo!
- E quando puderes abraçar-me?
- Quando puder abraçar-te hei-de crer que estreito ao coração todas as rosas de todas as roseiras do mundo!
- E quando me beijares?...
- Quando te beijar hei-de crer que encontrei um manancial onde fluirão confundidas as águas mais puras e doces de todos os mananciais!
Não sei quanto tempo continuei, afrontando os rigores da opinião alheia. Sei que, por fim, aproximou-se um guarda.
- Faça o favor de não escandalizar. (...)"
Ainda não dera meia dúzia de passos, veio sobre ela uma ave escura, aos pios de louca. Apareceu-lhe, saída do precipício numa curva rápida, soltando dois esguichos de porcaria.
Guida fez alto. Sentiu calafrios com a aproximação do pássaro, que planava por cima dela. Voava tão baixo, tão baixo, que se distinguiam as penas sujas e crespas do papo, o bico a gotejar e os olhos abertos em fenda à procura de qualquer coisa. Finalmente elevou-se num bater de asas desmanteladas, e mudou de rumo.
«Safa.»
Guida tinha o gosto de se ouvir a sós. No banho ficava de tempos e tempos a recitar palavras à toa e em todas descobria um significado especial, relacionado com coisas que só ela sabia. Um sentido oculto, como sucede com os surrealistas nas suas escrituras de ocasião.
(Não nos espantemos, de resto. Que isto se desse com Guida, não tinha nada de especial. Especial, porquê? Falar alto, só para si, é um excitante intelectual, um devaneio dos solitários, sonho ou vingança. Tecem diálogos ao espelho as burguesinhas das vilas, fala o cego para o surdo sobre o mundo que os rodeia. canta o galo capado, poucos o entendem. E poetas há, por essas secretarias e repartições, que vagueiam alta noite nas ruas da Baixa a esmiuçarem conversas de sua imaginação.
É natural. Vivemos numa época em que cada qual fala para si mesmo na companhia de muitos outros.)
«A larva que se estuda à espera que o vento tombe a maçã.»
Segundo o homem em questão, essas independentes (e a jovem atenta seria uma delas) têm sempre o preconceito da mulher vítima do mundo - mais ainda: da mulher vítima da natureza. São das tais que entendem que perder a virgindade é uma operação destinada a emendar a Natureza. Uma espécie de circuncisão, sem mais nada. Sem ritos nem ações de graças, pois o Criador bem pode limpar as mãos à parede pela bonita obra que deixou. «Onde houve eu isto?»
Ali mesmo - à mulher do engenheiro, ia jurar.
«Não há dúvida», tinha dito ela, minutos antes, comentando qualquer das muitas injustiças que pesam sobre o mundo. «Asneiras sobre asneiras, foi a bonita obra que o Criador deixou por cá.»
Com pausas e conversas ao acaso, deixaram os pacientes noturnos a estrada à beira do rio. Meteram por outras, à roda da cidade, sempre correndo, sempre sem parar, consumindo a noite como fazem as almas que vivem nas trevas a cumprir pena e que só descansam com o nascer do dia, adormecendo em forma de cantarinhas de lírios de charco ou de qualquer fantasia parecida.
Jogo que não tenha regra não é jogo. Jogo sem parceiro também não. Era o que dava aqui. A jovem Guida batalhava com palavras e o amigo não maxia uma palha para a ajudar. Jogo sem parceiro ou jogo à espera de parceiro por um lado; jogo sem regra nem desfecho, por outro. A garrafa dentro da própria garrafa.
De forma que o viajante do areal, para se guardar alheio ao jogo, fazia o papel do mau companheiro que ouve, que torna a ouvir, e que reserva para si aquilo que muito bem entende. Mas também isso acaba por ser jogo e por enfastiar. Às tantas ele já não podia mais.
«Se fôssemos indo, Guida?»
Guida fez alto. Sentiu calafrios com a aproximação do pássaro, que planava por cima dela. Voava tão baixo, tão baixo, que se distinguiam as penas sujas e crespas do papo, o bico a gotejar e os olhos abertos em fenda à procura de qualquer coisa. Finalmente elevou-se num bater de asas desmanteladas, e mudou de rumo.
«Safa.»
Guida tinha o gosto de se ouvir a sós. No banho ficava de tempos e tempos a recitar palavras à toa e em todas descobria um significado especial, relacionado com coisas que só ela sabia. Um sentido oculto, como sucede com os surrealistas nas suas escrituras de ocasião.
(Não nos espantemos, de resto. Que isto se desse com Guida, não tinha nada de especial. Especial, porquê? Falar alto, só para si, é um excitante intelectual, um devaneio dos solitários, sonho ou vingança. Tecem diálogos ao espelho as burguesinhas das vilas, fala o cego para o surdo sobre o mundo que os rodeia. canta o galo capado, poucos o entendem. E poetas há, por essas secretarias e repartições, que vagueiam alta noite nas ruas da Baixa a esmiuçarem conversas de sua imaginação.
É natural. Vivemos numa época em que cada qual fala para si mesmo na companhia de muitos outros.)
«A larva que se estuda à espera que o vento tombe a maçã.»
Segundo o homem em questão, essas independentes (e a jovem atenta seria uma delas) têm sempre o preconceito da mulher vítima do mundo - mais ainda: da mulher vítima da natureza. São das tais que entendem que perder a virgindade é uma operação destinada a emendar a Natureza. Uma espécie de circuncisão, sem mais nada. Sem ritos nem ações de graças, pois o Criador bem pode limpar as mãos à parede pela bonita obra que deixou. «Onde houve eu isto?»
Ali mesmo - à mulher do engenheiro, ia jurar.
«Não há dúvida», tinha dito ela, minutos antes, comentando qualquer das muitas injustiças que pesam sobre o mundo. «Asneiras sobre asneiras, foi a bonita obra que o Criador deixou por cá.»
Com pausas e conversas ao acaso, deixaram os pacientes noturnos a estrada à beira do rio. Meteram por outras, à roda da cidade, sempre correndo, sempre sem parar, consumindo a noite como fazem as almas que vivem nas trevas a cumprir pena e que só descansam com o nascer do dia, adormecendo em forma de cantarinhas de lírios de charco ou de qualquer fantasia parecida.
Jogo que não tenha regra não é jogo. Jogo sem parceiro também não. Era o que dava aqui. A jovem Guida batalhava com palavras e o amigo não maxia uma palha para a ajudar. Jogo sem parceiro ou jogo à espera de parceiro por um lado; jogo sem regra nem desfecho, por outro. A garrafa dentro da própria garrafa.
De forma que o viajante do areal, para se guardar alheio ao jogo, fazia o papel do mau companheiro que ouve, que torna a ouvir, e que reserva para si aquilo que muito bem entende. Mas também isso acaba por ser jogo e por enfastiar. Às tantas ele já não podia mais.
«Se fôssemos indo, Guida?»
A força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma outra luz e dá-Ihe um sentido mais Iato: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com o outro não só a sua infelicidade mas sentir também todos os seus outros sentimentos: alegria, angústia, felicidade, dor. Esta compaixão (...) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afectiva, ou seja, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.
Num outro ciclo de sonhos, era condenada à morte. Numa noite em que acordara a gritar de terror, contou-lhe o seguinte sonho: «Havia uma grande piscina coberta. Éramos mais ou menos vinte. Só mulheres. Estávamos todas completamente nuas e tínhamos de marchar a passo à volta da água. Havia uma cesta pendurada no tecto e estava um homem lá dentro. Tinha um chapéu de abas largas que lhe escondiam a cara, mas eu sabia que eras tu. Davas-nos ordens. Gritavas. Tínhamos que desfilar a cantar e a flectir os joelhos. Quando uma das mulheres não fazia bem a flexão, tu disparavas a pistola e ela caía morta na água. Nesse momento, as outras desatavam todas a rir e punham-se a cantar ainda mais alto. E tu, tu não tiravas os olhos de nós; se alguma fazia um movimento de través, abatia-la imediatamente. A água estava cheia de cadáveres a flutuar. E eu, eu sabia que já não tinha forças para fazer a flexão seguinte e que tu me ias matar!»
Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto, desembaraçar-se de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de um pai. Só lhe ficara o medo das mulheres. Desejava-as, mas elas atemorizavam-no. Entre o medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que chamava «amizade erótica». Dizia peremptoriamente às amantes: só uma relaçâo expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos.
No momento em que sente a volúpia espalhar-se-lhe pelo corpo, Franz dissolve-se no infinito da sua obscuridade, ele próprio se transforma em infinito. Mas quanto mais um homem cresce na sua obscuridade interior, mais diminuído fica na sua aparência física. Um homem de olhos fechados não é senão um rebotalho de si próprio. Como não quer assistir a isso, Sabina também fecha os olhos. Para ela, a obscuridade não é o infinito. Fecha os olhos porque quer separar-se do que está a ver, porque quer negá-lo. Recusa-se a ver.
O que encontrara inesperadamente naquela igreja não fora Deus, mas a beleza. Ao mesmo tempo, tinha perfeita consciência que aquela igreja e aquelas litanias não eram belas em si mesmas, mas que a sua beleza lhes vinha do contraste com os Estaleiros da Juventude onde os seus dias se passavam no meio da barulheira infernal das canções. A missa era bela por lhe ter aparecido súbita e clandestinamente como um mundo traído.
Aprendeu nesse dia que a beleza é um mundo traído. Só podemos encontrá-la quando aqueles que a perseguem a deixam por engano num sítio qualquer. A beleza esconde-se atrás dos cenários de um desfile do 1° de Maio. Para dar com ela, primeiro é preciso furar a tela do cenário.
Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.
Até aqui, os momentos de traição exaltavam-na e ficava sempre cheia de alegria só à ideia do novo caminho que se abria e da aventura sempre nova da traição que a esperava no fim da viagem. Mas que aconteceria se a viagem acabasse? Pais, maridos, amores, pátrias podem trair-se, mas o que resta para trair quando já não houver pais, nem marido, nem amor, nem pátria?
Sabina sentia um grande vazio em torno de si. E se esse vazio fosse precisamente o fim de todas as traições?
Quando se encontram a sós no quarto, às vezes, a sua jovem amiga levanta a cabeça do livro e poisa um olhar interrogativo sobre ele: «Em que estás tu a pensar?»
Franz está sentado num sofá com os olhos perdidos no tecto. Responda o que responder, está certamente a pensar em Sabina.
Quando publica um trabalho numa revista cientifica, a sua universitariazinha é sempre a primeira a lê-lo e quer discuti-lo imediatamente com ele. Mas ele, ele só pensa no que Sabina diria do texto. Tudo quanto faz, fá-lo para Sabina e de uma forma de que Sabina gostasse.
É uma infidelidade muito inocente, talhada à medida de Franz, que é incapaz de fazer mal à sua universitariazinha de óculos. O culto de Sabina que pratica tem muito menos a ver com o amor do que com a religião.
Mas, não nos enganemos! Não procura vingar-se de Tomas. Só procura uma saída para o labirinto onde se encontra perdida. Sabe que lhe é pesada: leva as coisas demasiado a sério, leva tudo para o trágico, não consegue compreender a leveza e a alegre futilidade do amor físico. Gostava tanto de aprender a leveza! Gostava tanto que lhe ensinassem a deixar de ser anacrónica!
Se, para outras mulheres, a coquetterie é uma segunda natureza, uma rotina insignificante, para Tereza, daqui em diante ela será o campo de uma importante investigação que deve fazer-lhe descobrir aquilo de que é capaz. Mas por ser assim tão importante, assim tão grave, a sua coquetterie perdeu toda a leveza, é forçada, expressamente convocada, excessiva. Rompeu-se o equilíbrio entre a promessa e a falta de garantias (no qual reside precisamente o autêntico virtuosismo da coquetterie!). Promete, mas sem a clareza suficiente, para fazer ver que a sua promessa não a compromete a nada. Ou, dito de outra maneira, todos julgam que é uma mulher extraordinariamente fácil. E depois, quando os homens reclamam o pagamento daquilo que pensam que lhes foi prometido, deparam com uma resisténcia inesperada que só pode encontrar explicação na refinada crueldade de Tereza.
O homem não tentou forçá-la e agarrou-a pelo braço. Caminhavam pelo imenso relvado e Tereza nunca mais se decidia a escolher a árvore junto da qual morreria. Ninguém a obrigava a ter pressa, mas ela sabia que, acontecesse o que acontecesse, não podia escapar. Vendo à sua frente um castanheiro em flor, aproximou-se dele. Encostou-se ao tronco e levantou a cabeça: viu a folhagem atravessada pelos raios de sol e, muito ao longe, ouviu a cidade a murmurar debilmente, docemente, como se o seu murmúrio fosse o rumor de mil e um violinos a tocar;
O homem ergueu a espingarda.
Ela já tinha perdido a coragem toda. Sentia-se desesperada com a sua fraqueza, mas não conseguiu dominá-la. Disse: «Não! Não é de minha livre vontade!»
Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possivel para o paraiso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito boa gente por causa disso. Mais tarde, tomou-se claro como a luz do dia que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas eram assassinos.
Então todos caíram em cima dos comunistas: eles é que cram responsáveis pela desgraça do país (que se encontrava pobre e arminado), pela perda da independéncia nacional (o pais tinha caido sob a alçada dos russos), pelos homicídios judiciais!
O debate resumia-se, portanto, a uma questão: os comunistas não saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de nada?
Os homens que têm a mania das mulheres dividem-se facilmente em duas categorias. Uns procuram em todas as mulheres a ideia que eles próprios têm da mulher tal como ela lhes aparece em sonhos, o que é algo de subjectivo e sempre igual. Aos outros, move-os o desejo de se apoderarem da infinita diversidade do mundo feminino objectivo.
A obsessão dos primeiros é uma obsessão lírica; o que procuram nas mulheres não é senão eles próprios, não é senão o seu próprio ideal, mas, ao fim e ao cabo, apanham sempre uma grande desilusão, porque, como sabemos, o ideal é precisamente o que nunca se encontra. Como a desilusão que os faz andar de mulher em mulher dá, ao mesmo tempo, uma espécie de desculpa melodramática à sua inconstância, não poucos corações sensíveis acham comovente a sua perseverante poligamia.
A outra obsessão é uma obsessão épica e as mulheres não vêem nela nada de comovente: como o homem não projecta nas mulheres um ideal subjectivo, tudo tem interesse e nada pode desiludi-lo. E esta impossibiliade de desilusão encerra em si algo de escandaloso. Aos olhos do mundo, a obsessão do femeeiro épico não tem remissão (porque não é resgatada pela desilusão).
Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os amigos causam-lhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre pelo mesmo nome.
Na sua caça ao conhecimento, os femeeiros épicos (e é evidentemente a esta categoria que Tomas pertence) afastam-se cada vez mais da beleza feminina convencional (de que depressa se cansam) e acabam infalivelmente como colecionadores de curiosidades. Têm consciência de tal coisa, envergonham-se um pouco dela, e, para não incomodar os amigos, nunca aparecem em público com as amantes.
Sabia que não devia acordá-la e que devia voltar a conduzi-la para o sono; tentou responder-lhe com palavras que lhe acendessem na cabeça a faúlha de um novo sonho.
«Estou a olhar para as estrelas, disse ele.
-Não me mintas, tu não estás a olhar para as estrelas, tu estás a olhar para baixo.
-Mas, como vamos num avião; as estrelas estão por baixo de nós.
-Ah!», disse Tereza. Apertou ainda com mais força a mão de Tomas e voltou a adormecer. Tomas sabia que, agora, Tereza estava a olhar pela janela de um avião que voava tão alto que ia por cima das estrelas.
Também era a primeira vez que os acordava! Esperava sempre que um dos dois acordasse antes de saltar para a cama.
Mas, desta vez, não se contivera quando, de repente a meio da noite, ficara finalmente acordado de todo De que longínquas paragens voltaria? Que espectros teria enfrentado? E agora, ao perceber que estava em casa, ao reconhecer os seres que lhe eram mais familiares, não conseguiu conter-se e teve de comunicar-lhe a sua terrível alegria, a alegria que lhe dava estar de regresso e ter nascido outra vez.
Se, em vez de ser um cão, Karenine fosse um ser humano, certamente que já teria dito a Tereza há muito tempo: «Ouve lá, já estou farto de vir todos os dias com um croissant na boca. Não és capaz de me arranjar outra coisa? » Nesta frase, encontra-se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição.
Num outro ciclo de sonhos, era condenada à morte. Numa noite em que acordara a gritar de terror, contou-lhe o seguinte sonho: «Havia uma grande piscina coberta. Éramos mais ou menos vinte. Só mulheres. Estávamos todas completamente nuas e tínhamos de marchar a passo à volta da água. Havia uma cesta pendurada no tecto e estava um homem lá dentro. Tinha um chapéu de abas largas que lhe escondiam a cara, mas eu sabia que eras tu. Davas-nos ordens. Gritavas. Tínhamos que desfilar a cantar e a flectir os joelhos. Quando uma das mulheres não fazia bem a flexão, tu disparavas a pistola e ela caía morta na água. Nesse momento, as outras desatavam todas a rir e punham-se a cantar ainda mais alto. E tu, tu não tiravas os olhos de nós; se alguma fazia um movimento de través, abatia-la imediatamente. A água estava cheia de cadáveres a flutuar. E eu, eu sabia que já não tinha forças para fazer a flexão seguinte e que tu me ias matar!»
Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto, desembaraçar-se de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de um pai. Só lhe ficara o medo das mulheres. Desejava-as, mas elas atemorizavam-no. Entre o medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que chamava «amizade erótica». Dizia peremptoriamente às amantes: só uma relaçâo expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos.
No momento em que sente a volúpia espalhar-se-lhe pelo corpo, Franz dissolve-se no infinito da sua obscuridade, ele próprio se transforma em infinito. Mas quanto mais um homem cresce na sua obscuridade interior, mais diminuído fica na sua aparência física. Um homem de olhos fechados não é senão um rebotalho de si próprio. Como não quer assistir a isso, Sabina também fecha os olhos. Para ela, a obscuridade não é o infinito. Fecha os olhos porque quer separar-se do que está a ver, porque quer negá-lo. Recusa-se a ver.
O que encontrara inesperadamente naquela igreja não fora Deus, mas a beleza. Ao mesmo tempo, tinha perfeita consciência que aquela igreja e aquelas litanias não eram belas em si mesmas, mas que a sua beleza lhes vinha do contraste com os Estaleiros da Juventude onde os seus dias se passavam no meio da barulheira infernal das canções. A missa era bela por lhe ter aparecido súbita e clandestinamente como um mundo traído.
Aprendeu nesse dia que a beleza é um mundo traído. Só podemos encontrá-la quando aqueles que a perseguem a deixam por engano num sítio qualquer. A beleza esconde-se atrás dos cenários de um desfile do 1° de Maio. Para dar com ela, primeiro é preciso furar a tela do cenário.
Mas o que acontecera ao certo a Sabina? Nada. Deixara um homem porque queria deixá-lo. Esse homem tinha vindo atrás dela? Tinha querido vingar-se? Não. O seu drama não era o drama do peso, mas o da leveza. O que se abatera sobre ela não era um fardo, mas a insustentável leveza do ser.
Até aqui, os momentos de traição exaltavam-na e ficava sempre cheia de alegria só à ideia do novo caminho que se abria e da aventura sempre nova da traição que a esperava no fim da viagem. Mas que aconteceria se a viagem acabasse? Pais, maridos, amores, pátrias podem trair-se, mas o que resta para trair quando já não houver pais, nem marido, nem amor, nem pátria?
Sabina sentia um grande vazio em torno de si. E se esse vazio fosse precisamente o fim de todas as traições?
Quando se encontram a sós no quarto, às vezes, a sua jovem amiga levanta a cabeça do livro e poisa um olhar interrogativo sobre ele: «Em que estás tu a pensar?»
Franz está sentado num sofá com os olhos perdidos no tecto. Responda o que responder, está certamente a pensar em Sabina.
Quando publica um trabalho numa revista cientifica, a sua universitariazinha é sempre a primeira a lê-lo e quer discuti-lo imediatamente com ele. Mas ele, ele só pensa no que Sabina diria do texto. Tudo quanto faz, fá-lo para Sabina e de uma forma de que Sabina gostasse.
É uma infidelidade muito inocente, talhada à medida de Franz, que é incapaz de fazer mal à sua universitariazinha de óculos. O culto de Sabina que pratica tem muito menos a ver com o amor do que com a religião.
Mas, não nos enganemos! Não procura vingar-se de Tomas. Só procura uma saída para o labirinto onde se encontra perdida. Sabe que lhe é pesada: leva as coisas demasiado a sério, leva tudo para o trágico, não consegue compreender a leveza e a alegre futilidade do amor físico. Gostava tanto de aprender a leveza! Gostava tanto que lhe ensinassem a deixar de ser anacrónica!
Se, para outras mulheres, a coquetterie é uma segunda natureza, uma rotina insignificante, para Tereza, daqui em diante ela será o campo de uma importante investigação que deve fazer-lhe descobrir aquilo de que é capaz. Mas por ser assim tão importante, assim tão grave, a sua coquetterie perdeu toda a leveza, é forçada, expressamente convocada, excessiva. Rompeu-se o equilíbrio entre a promessa e a falta de garantias (no qual reside precisamente o autêntico virtuosismo da coquetterie!). Promete, mas sem a clareza suficiente, para fazer ver que a sua promessa não a compromete a nada. Ou, dito de outra maneira, todos julgam que é uma mulher extraordinariamente fácil. E depois, quando os homens reclamam o pagamento daquilo que pensam que lhes foi prometido, deparam com uma resisténcia inesperada que só pode encontrar explicação na refinada crueldade de Tereza.
O homem não tentou forçá-la e agarrou-a pelo braço. Caminhavam pelo imenso relvado e Tereza nunca mais se decidia a escolher a árvore junto da qual morreria. Ninguém a obrigava a ter pressa, mas ela sabia que, acontecesse o que acontecesse, não podia escapar. Vendo à sua frente um castanheiro em flor, aproximou-se dele. Encostou-se ao tronco e levantou a cabeça: viu a folhagem atravessada pelos raios de sol e, muito ao longe, ouviu a cidade a murmurar debilmente, docemente, como se o seu murmúrio fosse o rumor de mil e um violinos a tocar;
O homem ergueu a espingarda.
Ela já tinha perdido a coragem toda. Sentia-se desesperada com a sua fraqueza, mas não conseguiu dominá-la. Disse: «Não! Não é de minha livre vontade!»
Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possivel para o paraiso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar muito boa gente por causa disso. Mais tarde, tomou-se claro como a luz do dia que o paraíso não existia e, portanto, que os entusiastas eram assassinos.
Então todos caíram em cima dos comunistas: eles é que cram responsáveis pela desgraça do país (que se encontrava pobre e arminado), pela perda da independéncia nacional (o pais tinha caido sob a alçada dos russos), pelos homicídios judiciais!
O debate resumia-se, portanto, a uma questão: os comunistas não saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de nada?
Os homens que têm a mania das mulheres dividem-se facilmente em duas categorias. Uns procuram em todas as mulheres a ideia que eles próprios têm da mulher tal como ela lhes aparece em sonhos, o que é algo de subjectivo e sempre igual. Aos outros, move-os o desejo de se apoderarem da infinita diversidade do mundo feminino objectivo.
A obsessão dos primeiros é uma obsessão lírica; o que procuram nas mulheres não é senão eles próprios, não é senão o seu próprio ideal, mas, ao fim e ao cabo, apanham sempre uma grande desilusão, porque, como sabemos, o ideal é precisamente o que nunca se encontra. Como a desilusão que os faz andar de mulher em mulher dá, ao mesmo tempo, uma espécie de desculpa melodramática à sua inconstância, não poucos corações sensíveis acham comovente a sua perseverante poligamia.
A outra obsessão é uma obsessão épica e as mulheres não vêem nela nada de comovente: como o homem não projecta nas mulheres um ideal subjectivo, tudo tem interesse e nada pode desiludi-lo. E esta impossibiliade de desilusão encerra em si algo de escandaloso. Aos olhos do mundo, a obsessão do femeeiro épico não tem remissão (porque não é resgatada pela desilusão).
Como o femeeiro lírico gosta sempre do mesmo tipo de mulheres, quase nem se repara quando tem uma amante nova; os amigos causam-lhe sérios embaraços porque nunca vêem que a sua companheira já não é a mesma e tratam as suas amantes sempre pelo mesmo nome.
Na sua caça ao conhecimento, os femeeiros épicos (e é evidentemente a esta categoria que Tomas pertence) afastam-se cada vez mais da beleza feminina convencional (de que depressa se cansam) e acabam infalivelmente como colecionadores de curiosidades. Têm consciência de tal coisa, envergonham-se um pouco dela, e, para não incomodar os amigos, nunca aparecem em público com as amantes.
Sabia que não devia acordá-la e que devia voltar a conduzi-la para o sono; tentou responder-lhe com palavras que lhe acendessem na cabeça a faúlha de um novo sonho.
«Estou a olhar para as estrelas, disse ele.
-Não me mintas, tu não estás a olhar para as estrelas, tu estás a olhar para baixo.
-Mas, como vamos num avião; as estrelas estão por baixo de nós.
-Ah!», disse Tereza. Apertou ainda com mais força a mão de Tomas e voltou a adormecer. Tomas sabia que, agora, Tereza estava a olhar pela janela de um avião que voava tão alto que ia por cima das estrelas.
Também era a primeira vez que os acordava! Esperava sempre que um dos dois acordasse antes de saltar para a cama.
Mas, desta vez, não se contivera quando, de repente a meio da noite, ficara finalmente acordado de todo De que longínquas paragens voltaria? Que espectros teria enfrentado? E agora, ao perceber que estava em casa, ao reconhecer os seres que lhe eram mais familiares, não conseguiu conter-se e teve de comunicar-lhe a sua terrível alegria, a alegria que lhe dava estar de regresso e ter nascido outra vez.
Se, em vez de ser um cão, Karenine fosse um ser humano, certamente que já teria dito a Tereza há muito tempo: «Ouve lá, já estou farto de vir todos os dias com um croissant na boca. Não és capaz de me arranjar outra coisa? » Nesta frase, encontra-se resumida toda a maldição do homem. O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha recta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição.
"Os manuscritos não ardem."
"A cobardia é o pior dos defeitos."
"A cobardia é o pior dos defeitos."
Mal o Glenn havia tocado meia dúzia de compassos já o Wertheimer pensara em desistir, lembro-me perfeitamente, o Wertheimer tinha entrado na sala do primeiro andar do Mozarteum que havia sido reservada para o Horowitz e escutou e viu Glenn, ficou imóvel à porta, sem ser capaz de se sentar, foi preciso que o Horowitz o convidasse a sentar-se, mas não foi capaz de se sentar durante todo o tempo em que o Glenn esteve a tocar, só depois do Glenn ter parado de tocar é que o Wertheimer se sentou, tinha os olhos fechados, estou a ver isso ainda perfeitamente, pensei, ele não disse nem mais uma palavra. Usando uma expressão patética posso dizer que aquilo foi o fim, o fim da carreira de virtuoso do Wertheimer.
Para o Wertheimer era sempre importante saber o que as pessoas pensavam dele, o Glenn não dava a isso o minimo valor, como eu próprio também não, a mim, tal como ao Glenn, fora-me sempre indiferente o que o chamado meio social poderia pensar a meu respeito. O Wertheimer falava sempre, mesmo quando não tinha nada para dizer, só porque o estar calado se tornara perigoso para ele, o Glenn ficava calado mesmo por longos períodos, e eu, à semelhança do Glenn, podia estar calado durante dias pelo menos, conquanto não fosse capaz de o fazer durante semanas, como o Glenn fazia. Bastava o medo de não ser levado a sério para tornar falador o nosso náufrago, pensava eu. (...) O Wertheimer era portanto uma pessoa que podia perfeimeme estar calado durante muito tempo e mesmo durante mais tempo ainda do que o Glenn e eu, mas que, logo que estava connosco, se sentia obrigado a falar, pensei eu.
Imaginamos muito frequentemente que estamos sentados a uma mesa juntamente com aquelas pessoas por quem nos sentimos atraidos toda a vida, com essas chamadas pessoas simples, que, como é natural, idealizamos de uma forma muito diferente daquela como elas são na realidade, e depois, se nos sentamos realmente com elas a uma mesa, vemos que elas não são como nós as idealizámos, e que pertencemos a um mundo absolutamente diferente do delas, ao contrário do que nos havíamos convencido, e assim, sentados à mesma mesa e no meio delas, apanhamos exactamente esse mesmo choque que temiamos, pelo facto de nos termos sentado à mesma mesa que elas e termos acreditado que pertencíamos ao mesmo mundo que elas ou que poderíamos estar sentados com elas, por muito pouco tempo que fosse, sem sofrer o correspondente castigo, o que é afinal o maior de todos os erros, pensava eu. Sentimos toda a vida uma ânsia por essas pessoas e queremos estar junto delas, e, logo que lhes revelamos o que sentimos a seu respeito, somos repelidos por elas e da forma mais atroz.
Para o Wertheimer era sempre importante saber o que as pessoas pensavam dele, o Glenn não dava a isso o minimo valor, como eu próprio também não, a mim, tal como ao Glenn, fora-me sempre indiferente o que o chamado meio social poderia pensar a meu respeito. O Wertheimer falava sempre, mesmo quando não tinha nada para dizer, só porque o estar calado se tornara perigoso para ele, o Glenn ficava calado mesmo por longos períodos, e eu, à semelhança do Glenn, podia estar calado durante dias pelo menos, conquanto não fosse capaz de o fazer durante semanas, como o Glenn fazia. Bastava o medo de não ser levado a sério para tornar falador o nosso náufrago, pensava eu. (...) O Wertheimer era portanto uma pessoa que podia perfeimeme estar calado durante muito tempo e mesmo durante mais tempo ainda do que o Glenn e eu, mas que, logo que estava connosco, se sentia obrigado a falar, pensei eu.
Imaginamos muito frequentemente que estamos sentados a uma mesa juntamente com aquelas pessoas por quem nos sentimos atraidos toda a vida, com essas chamadas pessoas simples, que, como é natural, idealizamos de uma forma muito diferente daquela como elas são na realidade, e depois, se nos sentamos realmente com elas a uma mesa, vemos que elas não são como nós as idealizámos, e que pertencemos a um mundo absolutamente diferente do delas, ao contrário do que nos havíamos convencido, e assim, sentados à mesma mesa e no meio delas, apanhamos exactamente esse mesmo choque que temiamos, pelo facto de nos termos sentado à mesma mesa que elas e termos acreditado que pertencíamos ao mesmo mundo que elas ou que poderíamos estar sentados com elas, por muito pouco tempo que fosse, sem sofrer o correspondente castigo, o que é afinal o maior de todos os erros, pensava eu. Sentimos toda a vida uma ânsia por essas pessoas e queremos estar junto delas, e, logo que lhes revelamos o que sentimos a seu respeito, somos repelidos por elas e da forma mais atroz.